resenha de ‘Inquietações em tempos de insônia’, de Leonardo Tonus

Por Jorge Antônio Ribeiro

capa_inquietacoesNo bosque das metáforas, um poeta precisa encontrar as trilhas que levam à poesia com seus encantos e suas associações harmoniosas. Ele necessita da plasticidade e do frescor da linguagem. Tem a árdua tarefa de pôr palavras na boca das coisas que não falam. Como afirma Octavio Paz, em seu livro O arco e a lira, “A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero”.

Neste livro, Inquietações em tempos de insônia, de Leonardo Tonus, publicado pela Editora Nós, o poeta encontrou as sinuosas trilhas na mata densa das imagens e oferece-as ao leitor como quem entrega comoção e enternecimento.

Apresentado em três partes distintas, na primeira, predomina o lirismo e o poeta inicia a viagem dizendo: “na superfície do infinito/ não quero respostas aos meus sonhos/ nem ao arrepio de teus cílios”. Trata-se de uma espécie de epígrafe em que se apresenta o que o poeta não deseja. É como uma advertência, indicando de saída a relação do poeta com o corpo do ser amado e com o seu próprio corpo. E a poesia flui no tempo, apresentada sem rodeios, sem adjetivação desnecessária, mas realçada com um modo metafórico que enriquece os versos e, por assim dizer, filtra a realidade e apresenta como resultado um modo novo de expressar o mundo. Invenção. Reinvenção: “não fui responsável pelas ondas/ ao recolher o sal de tuas coxas”. “Te amar para te perder/ a cada instante meu amor:/ ouriço a lamber seus próprios espinhos”. E segue: “sou um acúmulo de verbos,/ uma vida (des)finitiva/ sem preposições”. Nestes poucos versos, temos a imensidão de ondas, sal, espinhos, verbos e preposições, tudo ordenado com aguda percepção e muita sensibilidade poética.

O título desta primeira parte, “do tempo, teu corpo”, anuncia o conteúdo que se seguirá e a poesia de Leonardo Tonus passa, então, por lágrimas, paisagens e falésias do corpo, despedidas, abismos de bocas e olhos, cicatrizes, silêncios, errâncias e areias.

A segunda parte, “réquiem para folhas”, apresenta poemas em que a morte circunda os versos como se o poeta fizesse uma espécie de prece para o que já não há. Logo no primeiro poema desta parte, ele diz: “O lugar possível deixou de existir/ tornou-se nada,/ um tristemente nada”. Assim se constrói aqui o “diálogo com a ausência” de que fala Octavio Paz.

E nos poemas seguintes o poeta utiliza a metalinguagem para continuar seu discurso poético. As palavras falam das palavras para erigir a poesia: “falho doravante a palavra/ na certeza de nela nunca me construir”. E mais adiante: “a nada hão de retornar, as palavras/ que já não dizem o que dizem os verbos,/ que já não sabemos o que dizem”. Ele busca considerar e expressar com minúcias a natureza interior de cada um dos poemas. Procura e encontra a poesia. E a entrega ao leitor. Seu universo de palavras apresenta vida e morte num todo indissociável. Um mundo de imagens em que se sobressai a capacidade de expressar esteticamente uma visão particular da vida, mostrando o impacto da poesia nele e em nós, leitores, o murro que a palavra nos acerta, a língua que não há e a morte da palavra: “a poesia de corpos afogados no oceano de luz/ a que ela nos reduz”, “procuro no abismo do avesso/ o espaço soco da palavra”. E prossegue: “foi só depois de rasgar meu corpo ao meio/ que penetrei o tempo das palavras/ o tempo de perdê-las uma a uma/ nas manhãs de uma língua/ sequer sonhada”, “repito: a palavra hoje morreu,/ anônima,/ às seis horas da manhã”.

A terceira e última parte, com o título “(des)reencontros”, é como se fosse o prato principal do banquete que o poeta professor, Leonardo Tonus, oferece ao leitor que, a esta altura, já se acostumou com a elegância e pungência de seus versos. Metáforas, antíteses e personificações são o tempero ideal no sabor dos poemas que apresentam gritos, morte, inquietações, ausências e distâncias: “Quem me dera hoje sentir/ o hálito de uma leoa/ a lamber as faces do meu grito… e gritar ao mundo/ o meu silêncio infindo”. No arranjo das palavras, o poeta constrói seu ritmo que envolve e avança na direção de um mundo feito de lembranças, medos, silêncios e desemboca no desreencontro com a originalidade e o arrojo de sua linguagem: “bordo o tempo presente de meus mortos…” E os mortos que o poeta cita são Marielle Franco, Ahemed Osman, Sergio C. Gonzáles e outros, mostrando a carranca bruta da realidade atual: “bordo 33.293 mortos no Mediterrâneo/ no poemanto de Aleixo,/ no meu poemorto.” Realmente, o poeta borda suas palavras e seus versos na lousa do silêncio: “sobre a lápide quadrada desativada/ surge a angústia/ do silêncio”. Mas ele grita poesia contra a mudez e contra o medo: “que tenhamos medo/ é o que querem!”, “o medo que assassinou Marielle/ que torturou Herzog/ o medo que enforcou frei Tito/ que apagou o livre traço/ de Wollinski…”, “de dar as horas os relógios cessaram,/ de luzir as palavras/ que pelas paredes da casa/ choram o silêncio de meus desertos”, “quando a história reescreverem,/ não se esqueçam de contar o gosto/ das cinzas trituradas/ entre os dentes”.

Inquietações e insônias poetizadas com inteligência e emoção constroem o mundo do poeta, um universo alicerçado em compaixão, simpatia, piedade, empatia e tortura. Este é um livro que pede releituras e reflexões para que torne possível o mergulho profundo nas representações, ideias e sentimentos do autor. Reler e reler para que seja possível enveredar-se e embebedar-se no mundo que ele cria e recria. Para que se aceite de mãos estendidas o convite de poesia que ele faz em cada um dos poemas.

Jorge Antônio Ribeiro, paulista de Botucatu, professor de Português e revisor de textos, sempre gostou de escrever poemas e de contar histórias. Em 2011 publicou o livro de contos Esses dias pedem silêncio, pela Editora Edith, e já participou de diversas antologias. Escreve para desafiar o enigma das palavras.

Você pode ler três poemas do livro no [link] e a entrevista com o autor Leonardo Tonus no [link].