Se diz que o povo Tarauacá-ma, que ocupou uma porção pequena de solo entre o norte do Paraguai e Campo Grande, acreditava que a raça humana não passava de um sonho produzido por uma mente divina, e que o nosso destino é a irremediável e fatal desaparição. A nossa duradoura existência depende da fidelidade da memória desse deus. E a memória, para eles, é similar a uma pedra que com o tempo se desgasta e perde sua forma, até virar um pó amorfo e indistinguível.
Esse povo acreditava que a mente era algo assim como um animal selvagem, um Caite-pê (assim a chamavam). Em alguns casos, alguns de nós conseguimos dominar nosso Caite-pê, e conviver com ele em relativa paz e harmonia. Porém, os desafortunados e os delirantes herdam uma mente descontrolada, que faz enlouquecer a alma do seu possuidor. Os Tarauacá-ma, então, entendiam que o Caite-pê do deus que sonhou um planeta diverso, com uma raça bípede e falante, não conseguiu controlar sua criação, e por isso a abandonou à sua sorte. Aos poucos vamos desaparecendo. Tornamo-nos cada vez mais difusos e dispensáveis.
Os Tarauacá-ma sabiam que seu entendimento teológico não era o único. Perto da cultura Tupí, por um lado, e da Aimará, por outro, fundamentaram que a diversidade se deve a que Deus precisa se disfarçar de diferentes formas para cada povo. O entendimento pleno da origem e da existência divina não são uma coisa com a qual o nosso Caite-pê conseguiria lidar. O segredo que revela todas as coisas, em todos os tempos, permanece velado a nós porque ele é parte substancial de nós (o segredo da existência está dentro de nós) e subjaz a nosso entendimento.
Existem boatos que especulam com a existência de um livro, escrito por um expedicionário espanhol que avistou o povo dos Tarauacá-ma à beira do rio Paraguai, entre 1734-36. O nome desse explorador é Fernando de Nordoñas e o nome do livro diz-se que é Nômades da Luz, o misterioso povo dos Tarauacá-ma. No livro, Nordoñas afirma ter convivido com ele, e compara essa cultura aos exóticos povos da Ásia meridional. Segundo os que afirmam ter lido a obra, a comunidade inteira reunia-se toda noite ao redor de uma fogueira para permanecer por umas horas em estado de semi meditação. Alimentavam-se, sobretudo, dos peixes que conseguiam pescar, de forma bastante rústica, no rio, também de frutos silvestres e de Javalis.
Entre as lendas que ainda sobrevivem naquela região, existe uma que indica que a cidade de “Lucia del Valle” leva o nome da sacerdotisa suprema dos Tarauacá-ma. A história (supersticiosa e banal, claro está) diz que os Tarauacá-ma suplicaram a Fernando de Nordoñas que não divulgasse a existência deles, nem o local onde eles costumavam habitar. Ante a negativa do espanhol, a sacerdotisa suprema, de uma beleza incomparável, ofereceu-se para casar-se com o explorador, em troca de não marcar o local onde tinha coabitado com aqueles indígenas.
A penemandu é uma flor que os indígenas costumavam usar para curar as crianças dos traumas ocasionados pelos pesadelos. Um chá produzido com flores de penemandu, bebido muitas vezes ao longo do tempo, poderia fazer a pessoa perder a memória. Além de usá-la para decorar a casa, Lucia se valia de flores de penemandu para cheirar a sala de jantar. O méleo perfume e seu açucarado sabor encantavam o espanhol. Seus efeitos fizeram que aos poucos o entusiasta homem perdesse o rastro, na lembrança, do local onde tinha encontrado a divina e inusitada tribo. Lucia, que também bebia do chá amnésico, e cheirava das flores na sala de jantar, aos poucos começou a esquecer seu papel divino, sua missão como líder espiritual. O risco assumido, abandonar sua identidade, não significava uma despesa, comparado ao perigo de extinção que assolava à sua cultura, a todas suas crenças que agora desapareciam lentamente para serem substituídas por outras, as do cruel invasor. Lucia aceitou mudar de afetos, com a certeza de que assim salvaria seus verdadeiros sentimentos.
Durante todos os anos em que esteve casada com o espanhol, Lucia, o nome que a sacerdotisa dos Tarauacá-ma adotou para se confundir com os colonizadores, dedicou-se a preencher e alegrar o coração do seu eventual marido, por amor ao seu verdadeiro deus, ao seu povo e, com o passar do tempo, por amor ao destino que uma indecifrável divindade tinha encomendado para ela. Em 1740, Fernando de Nordoñas foi eleito prefeito da cidade. Dois anos depois, uma poderosa doença quase o fulminou de forma definitiva. Só os cuidados da sua dedicada mulher, de quem pouco se conhecia sua origem, conseguiram salvar aquele valioso cidadão. Honrando a cristã devoção da dama, o povo decidiu batizar a cidade com o nome de “Lucia del Valle”. A história dos colonizadores lembra dela como uma devota da fé católica, apaixonada pelo seu marido, pelos seus filhos e por umas flores provenientes de plantas que só ela conseguia germinar no seu jardim. Ao ficar viúva, se recolheu de forma quase permanente na sua casa. Morreu sendo uma anciã alegre. Tem alguém que afirma que suas últimas palavras foram numa língua similar à Tupí Guaraní, mas é coisa do povo inventar histórias para criar confusão.
Juan Manuel Domínguez é escritor e jornalista, com colaborações no Le Monde Diplomatique BR e Arg, Mídia Ninja e Caos filosófico. É também produtor e diretor de fotografia especializado em fotografia de documentários para a defesa dos direitos humanos.