um sonho
Nas ruínas dos shoppings, nas ruas vazias
de uma metrópole em miniatura, sem nome,
o mato dominando tudo. Ruídos estranhos.
Vitrines quebradas lembrando teias de aranha,
caixas de produtos, bolor, pôsteres manchados
de sangue. Um telefone público tocando para ninguém.
Elevadores, escadas rolantes (ainda funcionam)
E você alcança o quarto 2014 através
das barbas-de-velho e goteiras nos corredores.
Labirinto de imagens, HOTEL HADES, fantasmas
da amnésia afetiva. Você não só jamais esteve aqui
Como percebe um bilhete diante da porta
a seus pés, onde se lê:
Faltam só mais alguns segundos
para Nada acontecer.
quarto escuro
O detetive avança pela desordem do estúdio.
A mobília está calada como testemunha.
Lá fora folhas se reviram, se estudam.
O telefone calado como um caramujo.
Um ano depois e todas as pistas
Deram em becos sem saída e luto.
“Nada disso está acontecendo, escuto
meus próprios passos sobre o escuro.
Dois gatos negros transando num muro.”
E o criminoso ali perto,
pronto para revelar quase tudo.
E na pequena floresta da biblioteca
O verde é um código secreto.
O detetive deita e cai num sono profundo.
E a carta o tempo todo sobre o criado-mudo.
a última viagem
Pisou na praia
pela primeira vez
em séculos —
Gaivotas o vigiavam.
Olor de algas.
O vento salino, ardente e Sul.
Odisseu desceu
da balsa murmurando
alguma coisa para si
num dialeto quase extinto.
Arrumou os remos, poucos peixes,
sob a música de um alto-falante
contra um por de sol salmão.
Depois, viu as lâmpadas frouxas
piscando nas casas do povoado.
Maresia de maconha alcançou suas narinas.
Funk.
Risadas altas.
Nenhum pescador o reconheceu.
Penélope nunca existira.
Aquela não era sua lenda.
Ítaca nunca existira.
Odisseu virou-se para a praia sem história
e nada disse:
acendeu um cigarro e contemplou
o azul escuro absurdo do mar noturno
contra as linhas brancas incansáveis
da arrebentação.
tempos de celebridade
Carlos, na próxima encadernação
Nascerei filho de alguém famoso.
E então, como um cão raivoso,
Não largarei meu precioso osso.
Quem disse que é preciso ler,
Ter talento? Não seja ridículo.
Esforço é coisa de otário.
Meu sobrenome será meu currículo.
Vou escrever uns poemas fofos
Umas cançõezinhas ordinárias
Com uma certeza: o Brasil nunca saiu
Das capitanias hereditárias.
et in Arcadia ego era seu lema
Viveu anos isolado no mato
Acreditando ser seu próprio mito.
Gordas gaivotas eram suas pastoras, Egito,
sua sala de estar. Amigos,
quase não tinha. Sua amante,
a escrita.
Termópilas, a caminhada pela trilha
até a praia do dia.
Por um tempo praticou a arte
da invisibilidade.
Levitação.
Hipnose de ondas.
Bibliomancia.
Com a natureza aprendeu a ficar mudo.
Fazia poesia sem receio, de tudo.
Da natureza aprendeu a ter apenas medo
Ou um imenso respeito.
Et in Arcadia Ego era seu lema.
Do que escreveu, ninguém se lembra,
Queimaram tudo.
Mas sua vida virou objeto de estudo.
Manasota Key
Nas páginas do mar
pelicanos em linha
escrevem as sombras de seus peitos
ao quase tocarem uma onda.
O sol rascunha rubros
bilhetes de despedida, toda tarde.
Golfinhos, suas barbatanas
relatam os rudes caminhos
pela pradaria das baleias.
Mergulhões redigem sua escrita kamikaze,
suicida, invisível por instantes.
Nas páginas da areia
(cujas conchas são suas obras completas)
fósseis negros de dentes de tubarão
escrevem a autobiografia
de dois milhões de anos.
Rastro de guaxinim,
seu romance de aventura
da duna à estrada.
Um siri deixa sua assinatura
sobre marcas de pneus de um SUV.
Garrafa com uma mensagem, um pen drive
com a história de um naufrágio.
Nas páginas do céu
nuvens ancestrais e sempre-novas relatam
suas viagens sobre o mundo, infinitas.
Furacões emplacam best-sellers
sobre o Golfo do México
enquanto folhas de outono caligrafam no ar
ideogramas precisos,
memórias do vento.
Satélites traçam haicais de luz.
A lua amarelo-limão descreve seu brilho solene
sobre as palmeiras da Flórida.
Eu não escrevo nada.
romance policial
A lanterna da lua banhava o morto.
No rosto do detetive, nenhum sopro
A não ser o ar pesado do mangue, o corpo
Caído, espesso sangue, e o pouco
Dito pelo policial com cara de mau
Que agora segurava um castiçal
Interrogando a loira de olhos negros
Que trabalhava para um restaurante grego
Da grana e dos bilhetes estranhos no porta-luvas,
Do estranho esgar de sorriso, do sangue em sua luva.
E antes que a canção no rádio acabe
Ele diz: “Para salvá-la, só um milagre”.
Nas mãos, a carta rasgada ao meio, garrafa de uísque
Pela metade. Mas ainda é cedo para que ele se arrisque.
Nada ficou claro nos depoimentos, de como essa sereia
Foi encontrada pela estrada à lua cheia:
“Do que não se pode falar, deve se calar”,
Ela disse, bem no momento dele virar
E ser beijado por seus lábios fatais.
A lua aumentava seus cristais.
Seguiu-se um minuto de silêncio
E os grilos pontuavam um indício. Ela disse:
“As pistas estão em toda parte, em seu diário,
No dia dezesseis em vermelho no calendário”.
Enquanto o detetive revistava a lua
A loira derramou uma poção branca na sua
Garrafinha de uísque. “Nessa profissão, é preciso jeito
Para resolver este quase crime perfeito”.
Ela não dizia nada, ou quase nada, só o olhava
Sabendo que a verdade estava em cada palavra.
A esta altura, tudo parecia bem nítido
E agora ele a forçava a beber o líquido.
Rodrigo Garcia Lopes é poeta, compositor, romancista, jornalista e tradutor (Walt Whitman, Sylvia Plath, Arthur Rimbaud, Laura Riding, The Seafarer, entre outros). Em 2011 seu poema “Stanzas in Meditation” foi publicado no best-seller Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século 20 (Editora Objetiva). É Mestre em Humanidades Interdisciplinares pela Arizona State University, com tese sobre William Burroughs, e Doutor em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina, com tese sobre Laura Riding. Em 1997 lançou Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje (Iluminuras), com 19 entrevistas com nomes como William Burroughs, John Cage, Charles Bernstein, Marjorie Perloff, Chick Corea, Meredith Monk e Allen Ginsberg. Em 2018 lançou Epigramas, de Marco Valério Marcial (Ateliê Editorial) e Roteiro Literário Paulo Leminski (Biblioteca Pública do Paraná). Experiências Extraordinárias (poesia, 2015) e O Trovador (romance policial, 2014), foram finalistas do prêmio Oceanos de Literatura. O Trovador foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2015.
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