A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.
Merda
Por Alexandre Marques Rodrigues

“Com catástrofes a gente não precisa verdadeiramente de se preocupar, elas surgem com certeza. Mas talvez haja necessidade de as provocar, de vez em quando, porque para virem por si próprias leva muito tempo.” (Thomas Bernhard)
Nós não somos mais um país, o Ruivo disse, saiu da cama: andou pelo quarto a procurar a roupa, o pau insistia ainda em ficar duro, o suor no corpo era um acaso; a televisão ligada, na sala, arremessava o noticiário contra as paredes, os apresentadores, a fingir histerias, se esparramavam pela porta sem pedir Com licença, sem perguntar Posso entrar. Victor recobrava o fôlego; deitado, seguia o Ruivo com os olhos, revezava os ouvidos entre as notícias e a frase dele, já repetida tantas vezes, Nós não somos mais um país. Por que você sempre sai da cama com tanta pressa, perguntou, disse Eu odeio isso; o Ruivo encontrou a cueca na sala, Era mais fácil quando trepávamos naquele seu ateliê, comentou, ficava tudo junto: a cama, as tintas, as telas, a cozinha, a sua poltrona: eu não perdia minha roupa um pouco em cada lado. Victor resmungou Realmente odeio isso, o Ruivo se assustou O quê, sugeriu Que a casa fique toda junta, e o outro precisou explicar o óbvio, Que você esteja aí na sala, disse, a procurar sua roupa, e não aqui na cama, junto comigo —
ainda assim, o Ruivo resistiu: não voltou para o quarto. Ficou postado diante da televisão. A imagem na tela mostrava uma multidão a se alastrar pela cidade; um jornalista tentava explicar alguma daquelas coisas que eles nunca conseguem explicar, o rei Alberto pega a mesma arma que arranjou na época das bombas, a arma com que brincou de roleta russa com Jacqueline — pega a mesma arma, balança a cabeça como quem lamenta, olha para Larissa. Ela chora; entendeu que não há solução: seja para o mundo ou para a vida, não há solução, é chegado o reino da merda, não há para onde fugir, não dá para passar uma porta, ir para o lado de fora com quem sai de um bar para fumar um cigarro na calçada; e o tempo não ajuda, não pode, com um soluço, não implanta Larissa de volta para o colo da mãe, para os passeios que dava na praia, segurando a mão do pai, cheia de orgulho por passear com aquele homem que apenas por um acaso era o seu pai. O rei Alberto diz Você já entendeu, Victor ruminou Eu era uma fraude, disse depois em voz alta Eu era uma fraude, Larissa não responde, o Ruivo perguntou O que você quer dizer com isso, continuou a olhar na televisão as pessoas que protestavam mais uma vez. Como se recordasse outra vida, Victor se lembrava, se lembrou, Já quando aquele seu amigo me encomendou as cópias dos quadros, disse, se corrigiu Falsificações, retomou do início, Já quando aquele seu amigo me encomendou as falsificações todo mundo viu, pôde ver: eu era uma fraude, não conseguia nem fazer umas bandeirinhas de merda coloridas com tinta óleo. O Ruivo vestiu a camisa, de volta ao quarto, vestiu a camisa e ficou de pé junto à cama, a velar um morto que tinham plantado dentro de um caixão imenso,
o rei Alberto insiste com Larissa, repete a pergunta, que não é uma pergunta, Você já entendeu, ele repete, ela concorda Sim. Eu olho a janela: você me disse Vai chover a semana inteira, e chove a semana inteira, por isso Larissa continua a chorar, chora com a inevitabilidade das leis da física — suas lágrimas caem como a entropia aumenta, como a inércia impõe a falta de fim ao movimento —; me perguntou O que vai fazer no domingo, me perguntou e eu não sei o que vou fazer no domingo, não sei o que faço hoje, mas Da próxima vez sou eu quem prepara o jantar, me explicou. Você não era uma fraude, o Ruivo disse para o caixão, para a cama, para Victor, que não se levantou, os mortos não se levantam; Apenas se cansou da pintura, o Ruivo ponderou, concluiu É isso, depois citou Igual Roberto se cansou do banco, igual eu me cansei da. Não foi em Natacha que ele pensou, é claro que não: o rei Alberto assente É isso mesmo, Larissa acende um cigarro, ele diz Não dá mais, como quem diagnostica É um câncer, ou É preciso operar, diz Não dá mais; anda de um lado para o outro na sala, não mais a sala onde Larissa tinha escrito na parede uma frase da Ulrike Meinhof —
o rei Alberto anda de um lado para o outro da sala, a arma na mão, de um lado para o outro, a arma que engatilha e desengatilha, de um lado para o outro, engatilha e desengatilha. Acha mesmo que não tem outro jeito, Larissa pergunta. Eu odeio esse seu otimismo — você me disse Vai passar, me mandou ouvir os discos do Glenn Gould e me disse Vai passar —, Eu odeio esse seu otimismo, rebateu Victor, reforçou Odeio, montou o deboche sobre a cara, imitou o Ruivo, disse em falsete A-pe-nas-se-can-sou-da-pin-tu-ra, depois perguntou com jeito de quem repreende, ou mesmo repreendeu Que merda você entende de pintura e de se cansar da pintura; o Ruivo se sentou na cama: pôs os sapatos, Nós não somos mais um país, disse outra vez, a apontar com o queixo na direção da sala, da televisão, das notícias, Não somos mais a porra de um país. Você me emprestou o Torga, eu perguntei se o Houellebecq tinha ficado na sua casa, Larissa duvida Acha mesmo que vai conseguir — O mundo é tudo o que é o caso, Wittgenstein escreveu, abriu com essa sura o Tractatus que você lia ontem —; Ele tem seguranças, ela continua, deve usar um colete a prova de balas, com certeza agora sempre usa um colete a prova de balas,
As bombas não adiantaram, o Ruivo disse cheio de pena, como quem se lembra das flores que se desfizeram quando o vaso caiu da mesa, As bombas não adiantaram de nada. Vê se pega na cozinha alguma coisa para a gente beber, pediu Victor, de repente um morto muito exigente, refastelado em seu caixão cheio de lençóis a imitar a seda, pediu E desliga essa televisão, pelo amor de deus; Eu preciso tentar, o rei Alberto contesta, mostra a arma para Larissa, É o que eu quero, explica, é o que todos querem: é o que eu espero, o que você espera, o que todos esperam. Eu perguntei se você já sabia, você me respondeu Sim, mas não me respondeu, não me disse Sim, apenas acenou com a cabeça, desviou os olhos para o chão, o rei Alberto argumenta Para que aquela gente toda foi às ruas, argumenta sem esperar qualquer resposta de Larissa, ela sentencia Você não vai conseguir, o Ruivo saiu do quarto, foi na direção da cozinha para pegar água, suco, whisky, vinho, chá, qualquer coisa para Victor beber — mas não conseguiu, não passou da sala:
parou outra vez na frente da televisão: olhou a multidão que a câmera, de dentro de um helicóptero, mostrava cheia de semelhanças com qualquer coisa que não era mais humana — a multidão era uma floresta, ou um rio, ou um mar, um deserto imenso a avançar suas dunas sobre a cidade. Não vai resolver, o Ruivo disse, disse É preciso algo mais, disse Desse jeito não vai mais resolver; em dezembro eu era um homem carregando um bonsai dentro do metrô, você se lembra, o rei Alberto recita Eu vou fazer, recita cheio de ênfases, como se dizer fosse já metade do gesto, Eu vou fazer, completa Vou matar o filho da puta. Victor perdeu a paciência, Quando é que você vai me chupar direito, perguntou para o Ruivo, se ergueu na cama como se tivesse chegado o terceiro dia, Quando é que vai me chupar até o final;
É preciso fazer alguma coisa, o rei Alberto insiste, o Ruivo voltou para o quarto, É preciso fazer qualquer coisa, voltou para o quarto sem água, sem suco, sem whisky, sem vinho, sem chá. Acha mesmo que vai ser assim — foi o que você me perguntou, e eu não sabia: não sei. Sentado na cama, Victor pediu Conversa comigo, pediu para o Ruivo, Larissa olha a arma que o rei Alberto muda de mão, mas não põe sobre a mesa, pede Conversa comigo, você também, Conversa comigo, me pede. É tão simples. Nós não somos mais um país, o Ruivo repete, Victor contesta Nós não somos mais um casal, o rei Alberto pergunta O que há ainda para conversar, você concorda com ele, concorda comigo, Tem razão, diz — Larissa para de chorar, Estou tão cansada, ela suspira —, o Ruivo desvia os olhos de Victor, os arremessa pela janela atrás da cama, onze andares para baixo, você me abre a porta, ele murmura, devagar, uma sílaba de cada vez, murmura
Merda.
Alexandre Marques Rodrigues é autor de Porca (Editora Record, 2019), Entropia (Editora Record, 2016; Teodolito, 2017) e Parafilias (Editora Record, 2014; Editora Teodolito, 2018).