Brasil: (im)possíveis diálogos #3

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Dois poemas s/título

Por Manuella Bezerra de Melo

printemps_ficcao
Vitor Rocha

Esperar um anjo com sua trombeta
esperar cuspir as pérolas antes de engolir
os rubis na areia
a areia em cascalhos
os pés sujos de pixe
o pixe sujo de cobiça
as pérolas cagadas dos porcos

Esperar uma noite bonita
um momento sublime
a luz ideal de velas
do lustre
do sorriso do gato
do breu
do silêncio que precede a guerra

Esperar que cresça o filho
um ano tem 365 dias
um filho viverá muitos anos
até que você voltará a dormir
uma noite parcial
nunca mais voltará
nunca mais voltará a dormir

Esperar pelo verão três estações inteiras
tempo é o que dura um terço de um ano
folhas secas animais mortos
pelos de gato nas almofadas
há uma primavera no entremeio
adubo aduba tudo
tudo morreu até você

Esperar que estanque o sangue
contemplar o fim da sangria na jarra
beber o vinho do escuro de um céu
e dançar com o homem coxo
o fado da sereia minhota
sob uma pedra azul brilhante
trazida na valsa de uma águia

Esperar que cresçam os cabelos
os fios do cabelo precisam do sol do verão
não crescem porque são cortados
são cortados por não crescem
queria-os longos mas os corto
como corto minha língua
minhas asas e meus punhos

* * *

Um dia qualquer, num sonho com a morte
extraviavam miolos numa intangível nau
que boiava ao mar soprada no vento às velas
até alcançar a branca areia latina

Nas imagens desconexas como sonhar o sonho
ou como a dor do sonho e da vida
avistava acordada os sonhos de dormida
e vomitava sob a cama a vontade dos lençóis
em minutos era infeliz e insatisfeita
foi tão forte que doeu a vida inteira

As amigas estavam mortas
e seus corpos foram sepultados neste corpo
condenado a carregá-los no ventre
e as gerar inteiras, restos e suas cóleras

Como mãe, sangrei nas pernas estas vidas mortas
mas como mãe celebrei a glória do gestar
um feto despejado do seu alojamento local
depois esqueci-me do sonho mas fiz notas
nas folhas de uma agenda do ano passado
amassada, foi ao lixo junto as fezes do gato

Manuella Bezerra de Melo é licenciada em Jornalismo, pós-graduada em Literatura e Interculturalidade e mestre em Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas. Publicou Desanônima (Editora Autografia, 2017), Existem Sonhos na Rua Amarela (Editora Multifoco, 2018) e Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Editora Urutau, 2019). Participa do coletivo Palavra Voa, onde opera como facilitadora, moderadora e realizadora em atividades literárias. Já teve seus poemas publicados em portais, blogs e revistas literárias brasileiras e portuguesas, entre elas Etudes Lusophones, Incomunidade, Escamandro, Germina, Revista Pixé, Revista Gueto, Revista Palavra Comum e Mulheres que Escrevem.