Brasil: (im)possíveis diálogos #2

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Empregadas

Por Tiago Germano

Para Leandro Assis e Triscila Oliveira

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Vitor Rocha

“Na família da minha mãe nós somos os mais ricos…”

Ela abriu a cueca branca entre os dedos e pediu que eu colocasse uma perna de cada vez.

“…mas na do meu pai eu já não sei dizer.”

Fez o mesmo com a calça jeans, fechando depois o zíper.

“Talvez os segundos… ou terceiros…”

Colocou o primeiro botão da camisa em sua casa. Deixou que eu tentasse abotoar o resto.

“O tio Duda tem dois carros, então acho que ele é o primeiro mais rico…”

Eu cheguei no botão da gola e percebi que alguma coisa estava errada.

“… e o tio Mário tem duas televisões.”

Ela me mostrou que eu havia pulado uma casa. Tirou os botões das casas erradas e guiou os meus dedos pelas certas.

“Isso sem contar o Master System do Rafa, né?”

Ela penteou o meu cabelo para frente. Depois para trás dividindo no meio.

“Mas aqui na rua sem dúvida nós somos os mais ricos.”

Eu ainda não precisava usar desodorante, então ela colocou a colônia, uma gota de cada vez, bem atrás das minhas orelhas.

“O vizinho pensa que é mais rico só porque tem uma antena parabólica no jardim.”

Ela me fez sentar na cama e calçou os meus tênis.

“No jardim! Você já viu?”

Eu nunca soube como ela fazia aquele nó tão fácil de desfazer, mas que não desmanchava nunca.

“E do que que adianta ter tanto canal só de boi?”

Ela recolheu a roupa suja e fez uma trouxa delas na toalha molhada.

“Na sua casa também tem canal de boi?”

Ela me deu as costas e saiu do meu quarto.

* * *

“São tempos difíceis. Tá quase impossível encontrar alguém de confiança…”

Minha mãe havia se aposentado mas não conseguia dar conta sozinha da casa. Uma diarista vinha uma vez por semana para ajudar na limpeza.

“…e comer de marmita todo dia você sabe como é, né, o seu pai reclama.”

Havíamos recém comprado uma máquina de lavar. Meu pai culpava a função de secagem por ter, segundo ele, encolhido suas camisas de linho.

“Eu já tenho que aguentar a obsessão dele com os fios de cabelo no chão e a poeira nos móveis.”

Meu pai passava os dedos nos móveis para conferir se estavam limpos. Já havia demitido mais de uma empregada por causa disso.

“Isso porque a Cida é limpinha e deixa tudo tinindo na segunda.”

Minha mãe o havia proibido de fazer o mesmo com a Cida.

“Mas sabe como é, né, uma vez por semana… consegue imaginar o tanto de poeira que entra por essas janelas?”

Havia uma obra no terreno da frente. O prédio começava a tomar a nossa vista para o mar.

“Lembra o drama que foi com a Zefa, na época da casa?”

Zefa: melhor bife da infância. Não sabia o que era a parmegiana mas acertou de primeira porque, quando viu a receita, disse que fazia pros filhos com ovo e queijo, sempre que dava pra comprar.

“Cozinhava direitinho aquela, mas era porca. Seu pai dava um chilique todo dia que passava o dedo no balcão da cozinha.”

Zefa tinha vergonha de comer na mesa mesmo depois de nós. Para falar a verdade, eu nunca tinha visto a Zefa comer.

“Mas pelo menos não roubava, né. Lembra daquela que escondia as coisas de vocês no quintal e depois pulava o muro de noite, pra pegar pros filhos?”

Neide: tinha voltado de São Paulo, grávida aos dezesseis. Foi a maior decepção da minha mãe quando engravidou de novo, ninguém sabia de quem. Meu pai pagou até a licença-maternidade e achou aquele roubo uma falha imperdoável, logo que ela voltou a trabalhar para nós.

“Sabe que a menina dessa Neide passou na Federal agora?

Eu gostava da Neide.

“Cotas, né? E a gente tendo que pagar faculdade particular por causa disso.”

Eu gostava na verdade da vitamina de abacate da Neide.

“Ah, mas a pior de todas foi aquela Nina, lembra, aquela com espírito de rica, que se metia nas conversas?”

Nina, a que mais havia durado. Deu banho de álcool em meu irmão pra baixar a febre e dormiu todas noites em nossa casa quando meus pais viajaram para fora pela primeira vez.

“Aquela eu nem quero saber por onde anda.”

Nina sempre resmungava quando tinha que arrumar a nossa cama.

“A gente sempre teve o dedo meio sujo pra empregada.”

Nina hoje tinha um pequeno ateliê de costura.

* * *

A Cida tinha acabado de ser demitida num acesso de fúria do meu pai, antes de sair para o trabalho.

“Eu digo, a gente só pode ter o dedo podre.”

Na área de serviço, a máquina de lavar ainda terminava o ciclo rápido com todas as minhas roupas acumuladas ao longo da semana. Eu já podia finalmente me vestir e ir para a faculdade também. Eu tinha vergonha de trocar de roupa na frente da minha mãe, então fui para a dependência de empregada.

“Você não se lembra, mas a única que deu certo com a gente pediu demissão quando vocês eram ainda pequenos.”

Troquei primeiro a cueca suja por outra limpa, quentinha, ainda com o calor da máquina.

“Aquela sim, era uma pessoa digna… simples, mas digna. Nunca tive do que reclamar.”

Sacudi a calça jeans ainda meio amassada e a vesti. Primeiro uma perna, depois a outra.

“Era a única que conseguia tirar você da cama de manhã e arrumar a tempo de chegar no colégio.”

Conferi o cheiro das minhas axilas antes de colocar a camisa, ainda com o aroma do amaciante.

“Só que teve esse dia, você não vai lembrar. Ela levou vocês pra escola, fez o serviço da casa, deixou tudo impecável, mas saiu sem dizer nada e encontrei um bilhete dela pedindo desculpas, dizendo que tinha que ir embora e que a gente não precisava se preocupar com o pagamento dos últimos dias.”

Demorei a desfazer o nó cego dos sapatos e a colocá-los nos pés.

“Nunca entendi porque ela foi embora.”

Penteei os cabelos no espelho da sala.

“Engraçado… Por mais que eu me esforce, não consigo lembrar o nome dela.”

Me despedi da minha mãe e só na porta percebi que tinha pulado um botão da camisa.

Tiago Germano é escritor e jornalista paraibano. Autor do romance A Mulher Faminta (Editora Moinhos, 2018) e da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), vencedora do Prêmio Minuano e indicada ao Prêmio Jabuti. Mestre e doutorando em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é bolsista do Programa de Internacionalização da CAPES na School of Literature, Drama and Creative Writing da Universidade de East Anglia (UEA), em Norwich (Inglaterra), por onde já passaram escritores como Ian McEwan e Kazuo Ishiguro. Seu romance O Que Pesa no Norte será lançado ainda este ano pela Editora Moinhos.