do amor e outros demônios
(*inédito)
O amor nos tempos do cólera
o amor de coleira
amor livre mas não despido
nu de meias
o amor de capa de chuva
Amor que cuida
de si
do outro
da humanidade
amor sem temor
mas sem ingenuidade
Amor sem ilusão
amor de verdade
com força fé látex coragem
Amor que permanece
que atravessa as idades
amor que cura
Mucosa com mucosa
agora é só pra quem
mais do que duro
dura
memória e maravilha
(*inédito)
Com os cabelos cheirando a sexo
e o corpo limpíssimo de depois do gozo
me deito
A cama no cio sibila e pulsa
Uma vertigem habita a nuca
tenho um mar na carne
e uma cachoeira nas costas
A boca deságua sinuosa
a pele brilha
banhada em memória e maravilha
s/título
(*do livro Bendita palavra)
Nesse lugar-poema
Desse livro que eu escrevo
Invento uma fala clara
Palavra feita pra boca
Com jeito de todo dia
E destino de se espalhar:
Nu aqui é pelado
Seio é peito
Bruma é neblina
Pungente é tudo que dói
Vasta é grande
Casta é pura
Retém aqui é segura
Aqui bela é bonita
Adorna é enfeita
Enreda é enrosca
Aqui não cabe floreio
Aqui reverto a inversão:
Simplicidade, aqui, é sofisticação.
pulso aberto
(*do livro Carne do umbigo)
Somos porta de entrada
e porta de saída
somos deusas e escravas
há mil gerações
Dentes afiados
no escuro de entre as pernas
veneno na ponta da cauda
bruxas
putas
loucas
santas
Somos as que sangram sem ferida
donas do prazer
donas da dor
as invisíveis
as perigosas
as pecadoras
as predadoras
Insaciáveis e geradoras
os corpos secretas casas
somos seres de unhas e tetas
caminhando aos milhares as estradas
Somos a terra e a semente
carne de aluguel em alma de rainha
as submissas
as bacantes
as que procriam e as que não
Somos as que evitam o desastre
as que inventam a vida
as que adiam o fim
mulher
multidão
para Eduardo Galeano
kintsugi
(*poema do livro Hermanas)
Não ser a mulher do avião
ruminando a palavra amor
a vida escorrendo verde pelo canto da boca
Não ser a que se desculpa
pelo almoço
pela agenda
por voar
por existir
Ser vibrante
ter a voz inteira
não oferecer soluções pra inexistentes problemas
não se espatifar
não se desmilinguir
Nunca ser a mulher do avião
engolindo sua culpa com amendoins
mendigando afeto pelo telemóvel
Ser frágil
aceitar as quedas
desistir de polir cada mínima aresta
e remendar com ouro as rachaduras
Maria Rezende é poeta, performer, montadora de filmes e celebrante de casamentos. Publicou quatro livros: Substantivo feminino (2003), Bendita palavra (2008), Carne do umbigo (2015), Hermanas (2019) — edição bilíngue em parceria com a compositora espanhola Amparo Sánchez —, além de dois CDs de poesia. Em recitais e com seus espetáculos, Carne do umbigo e Mulher multidão, já se apresentou em palcos de todo o Brasil e também de Portugal, Espanha e Argentina. Como montadora audiovisual assina treze longas-metragens e pílulas de videoarte. Celebra casamentos com muita emoção, em cerimônias costuradas por poesia. Site: www.mariadapoesia.com