porque as samambaias são mais sábias
Veja a palmeira balançando suas garras
em abnegação selvagem. E veja

sua postura fiel e seus valores
pois silencia e permanece sob
um céu volátil e ignorado mas
firme sobre a terra. Sabe que
passará e entende
o que não enxerga.
Em movimento se solta
ao que lhe sopra aceita
seus membros estoicos
obedientes à dança natural.
E ela mesma sopra
sobre nossas faces
nos braços duros
nas pernas gordas
a paisagem perene.
Estática sabiamente
parada enraíza sua história
em sulcos profundos
eternamente ligada à terra
sólida construção edificada maleável.
E sopra a pergunta: quem chegou
primeiro quem mais pisa aqui e
dança e segue o vento sem maiores
questionamentos.
E continua a ser fiel.
E continua a silenciar
até o último de seus dias balança
suas garras na despedida de todos
nós
matéria frágil e dura.
uma manhã tropical se inicia
na praça se acumulam
esperam
palavras e ordens
(têm marcado de giz branco
suas costas e blazers)
andam sempre com uma mão
recolhida atrás do corpo
não abrem ou oferecem
mas dão breves tapas
nas costas dos companheiros
mais queridos
ali contam-se os homens
recolhem-se as mulheres
junto com os animais
outros objetos de valor:
espera-se deles o suor
e a hipocrisia
delas as pernas rotundas
e abertas
planejam apenas
breves riscos no chão:
não há muros e portas
são homens inteiros
sem ressalvas
e desentendimentos:
não esperam que haja
segredos e privacidades
entre sentimentos
puros de justiça e progresso.
nada além da limitada carne
I
Quando for para lembrar por que
se é e se está e por que tanto respira
levante quando os vasos estiverem caídos
leia os cimentos quando estiverem marcados
limpe a poeira quando a terra for muita
E quando a carne for fresca
e as moscas muitas
e as flores frescas
e as moscas muitas
E quando as moscas forem frescas
e a maçã na boca fresca
e a cidade, podre, muita
E quando o amor for fresco
e as flores, de plástico, poucas
E quando as asas baterem na boca
na narina no ouvido e zunirem muitas
e as palavras ainda tiverem um humilde significado:
lembre-se dos nomes com dignidade
lembre-se em festa dos nomes
que permanecem com dignidade
diga em voz alta os nomes
com dignidade.
II
somos a passagem das aves migratórias
somos a crueldade plantada profunda
somos as forças diárias resistentes e nulas
cada barco e porto cada festa e gozo
cada parto e cada amor
somos a crueldade que veio antes de nós
cada berro animalesco cruz e espada
que nada sabemos e tudo pagamos
somos servos de cada morto e cada morte
toda última luta e dança e fala cerimoniosa
cada corpo e inseto que não poupamos
para nos revelar a beleza
cobram ousadia
falam por nós e nos exigem
prontidão
nenhum alarde sobre os telhados
Em um breve domingo
me vejo na esquina
corpo reto no farol
que cruza o caminho
e pega o trem matinal
cheio e determinado.
Um passo
é um passo
dos destinos inéditos
dos desejos humildes e dignos
dos pequenos gestos altruístas
dos amores mais profundos
e verdadeiros.
atrás de outro passo
dos sinais cósmicos
das mensagens cifradas
das impressões digitais.
Sonho o meu sonho único
de um milhão de homens.
E assim me carrego
um lugar qualquer.
e não era com a própria boca que se ria
Ouça!
as juntas estourando
as fibras maculadas
os tendões disformes:
é o homem
virando do avesso
remexendo os mortos
reescrevendo éticas
Ouça!
as vozes cada vez mais próximas
o som do grotesco avesso
os gritos dilacerantes
são os homens
suas vozes
empurrando-nos
para mais perto das bombas
mais perto
mais perto
o homem era avesso
o avesso virou pele
a pele virou avesso
quiseram esconder
o que oculto sempre foi
para propósitos abjetos
há algo de proibido
no mau hálito de cada bom homem
Ouça!
eles querem todos falar
mandar à merda
dar bons conselhos
serem apenas honestos
Guilherme Dearo (São Paulo, 1989) é poeta e dramaturgo. Escreveu os livros de poemas Cabeça de Touro (Editora Garupa, 2019) e Duas Hipóteses Para um Acontecimento (Editora Giostri, 2014). Publicou poemas em diferentes edições da revista 7 Faces. Escreveu as peças O Mar Além (Festival Satyrianas 2013), Câmara Escura (Festival Satyrianas 2014 e Festival Janela de Dramaturgia de Belo Horizonte 2016), Obscenos Gestos Avulsos (Festival Satyrianas 2015) e Terminal Princesa Isabel (Festival Satyrianas 2019).