cinco poemas do livro ‘Cabeça de Touro’, de Guilherme Dearo

porque as samambaias são mais sábias

Veja a palmeira balançando suas garras
em abnegação selvagem. E veja

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Capa de Cabeça de Touro

sua postura fiel e seus valores
pois silencia e permanece sob
um céu volátil e ignorado mas
firme sobre a terra. Sabe que

passará e entende
o que não enxerga.

Em movimento se solta
ao que lhe sopra aceita
seus membros estoicos
obedientes à dança natural.

E ela mesma sopra
sobre nossas faces
nos braços duros
nas pernas gordas
a paisagem perene.

Estática sabiamente
parada enraíza sua história
em sulcos profundos

eternamente ligada à terra
sólida construção edificada maleável.

E sopra a pergunta: quem chegou
primeiro quem mais pisa aqui e
dança e segue o vento sem maiores
questionamentos.

E continua a ser fiel.
E continua a silenciar

até o último de seus dias balança
suas garras na despedida de todos
nós
matéria frágil e dura.

uma manhã tropical se inicia

na praça se acumulam
esperam
palavras e ordens

(têm marcado de giz branco
suas costas e blazers)

andam sempre com uma mão
recolhida atrás do corpo
não abrem ou oferecem

mas dão breves tapas
nas costas dos companheiros
mais queridos

ali contam-se os homens
recolhem-se as mulheres
junto com os animais
outros objetos de valor:

espera-se deles o suor
e a hipocrisia
delas as pernas rotundas
e abertas
planejam apenas
breves riscos no chão:

não há muros e portas
são homens inteiros
sem ressalvas
e desentendimentos:

não esperam que haja
segredos e privacidades
entre sentimentos
puros de justiça e progresso.

nada além da limitada carne

I

Quando for para lembrar por que
se é e se está e por que tanto respira
levante quando os vasos estiverem caídos
leia os cimentos quando estiverem marcados
limpe a poeira quando a terra for muita

E quando a carne for fresca
e as moscas muitas

e as flores frescas
e as moscas muitas

E quando as moscas forem frescas
e a maçã na boca fresca
e a cidade, podre, muita

E quando o amor for fresco
e as flores, de plástico, poucas

E quando as asas baterem na boca
na narina no ouvido e zunirem muitas

e as palavras ainda tiverem um humilde significado:

lembre-se dos nomes com dignidade
lembre-se em festa dos nomes
que permanecem com dignidade
diga em voz alta os nomes
com dignidade.

II

somos a passagem das aves migratórias
somos a crueldade plantada profunda
somos as forças diárias resistentes e nulas
cada barco e porto cada festa e gozo
cada parto e cada amor

somos a crueldade que veio antes de nós
cada berro animalesco cruz e espada
que nada sabemos e tudo pagamos

somos servos de cada morto e cada morte
toda última luta e dança e fala cerimoniosa
cada corpo e inseto que não poupamos

para nos revelar a beleza
cobram ousadia
falam por nós e nos exigem
prontidão

nenhum alarde sobre os telhados

Em um breve domingo
me vejo na esquina
corpo reto no farol
que cruza o caminho
e pega o trem matinal
cheio e determinado.

Um passo
é um passo

dos destinos inéditos
dos desejos humildes e dignos
dos pequenos gestos altruístas
dos amores mais profundos
e verdadeiros.

atrás de outro passo

dos sinais cósmicos
das mensagens cifradas
das impressões digitais.

Sonho o meu sonho único
de um milhão de homens.

E assim me carrego
um lugar qualquer.

e não era com a própria boca que se ria

Ouça!
as juntas estourando
as fibras maculadas
os tendões disformes:

é o homem
virando do avesso
remexendo os mortos
reescrevendo éticas

Ouça!
as vozes cada vez mais próximas
o som do grotesco avesso
os gritos dilacerantes

são os homens
suas vozes
empurrando-nos
para mais perto das bombas

mais perto
mais perto

o homem era avesso
o avesso virou pele
a pele virou avesso
quiseram esconder
o que oculto sempre foi
para propósitos abjetos

há algo de proibido
no mau hálito de cada bom homem

Ouça!
eles querem todos falar
mandar à merda
dar bons conselhos
serem apenas honestos

Guilherme Dearo (São Paulo, 1989) é poeta e dramaturgo. Escreveu os livros de poemas Cabeça de Touro (Editora Garupa, 2019) e Duas Hipóteses Para um Acontecimento (Editora Giostri, 2014). Publicou poemas em diferentes edições da revista 7 Faces. Escreveu as peças O Mar Além (Festival Satyrianas 2013), Câmara Escura (Festival Satyrianas 2014 e Festival Janela de Dramaturgia de Belo Horizonte 2016), Obscenos Gestos Avulsos (Festival Satyrianas 2015) e Terminal Princesa Isabel (Festival Satyrianas 2019).