a única estação, de Rafael Gallo

“No fundo, posso dizer que um verão depressa substituiu outro verão.”
(O estrangeiro, Albert Camus)

Deveria ter pensado melhor, antes de sair de casa. “O casaco não coube na mala, vou carregar comigo”, escreve para Pedro, após despachar as bagagens. O corretor ortográfico do celular sempre a atrapalha quando redige mensagens em inglês, mas a língua é o ponto de encontro entre o casal, a meio caminho dos idiomas de cada um. “Pode deixar aí no aeroporto, nunca vai usar aqui”, a reposta dele almeja algum riso; quase tudo o que diz tem pitadas de humor, feito o ingrediente típico da gastronomia de outro país.

O difícil, para Kathrin, é ter a medida exata do que considerar com seriedade, ou relevar, entre as falas do namorado. As menções dele ao calor de lá — onde mora e para onde ela está prestes a se mudar — soam quase irreais, diante da neve de fevereiro que vê do lado de fora das vidraças. Pedro costuma dizer que na região dele é verão o ano inteiro. Kathrin acredita que só pode ser outro de seus exageros essa fala; a percepção dela há de ser diferente. É impossível ser verão o ano inteiro, isso acabaria com a própria ideia de ciclos anuais. Restariam apenas repetições de um estado do qual nunca se sai. Ela imagina: o tempo todo, uma única estação; suga com nervosismo o cigarro, na cabine fechada do aeroporto.

* * *

A viagem é longa: além do trem que a trouxe de Salzburgo — onde se despediu de todos — serão três voos daqui, de Viena, até o destino final: Recife-Guararapes. Impronunciáveis esses nomes em português; e pensar que Pedro reclama da dificuldade de falar alemão. Todo o período que ele passou na Áustria, por conta do doutorado, apoiou-se na língua inglesa ou, depois que se conheceram, na ajuda dela. Ninguém apostava na união dos dois, mas “o brasileiro” abriu leque tão novo de vivências, que Kathrin se atraiu quase de imediato. A volta dele para o Brasil daria fim à história dos dois ou novo começo. Escolheram a segunda opção.

O avião pousa no Recife, afinal. É a primeira viagem dela para outro continente; logo essa, permanente. Saber que Pedro a espera logo ali, na saída desses caminhos estrangeiros, dá segurança à excitação. Quando o encontra, ele está segurando uma placa com o nome dela escrito errado, feito um funcionário que não conhece quem veio buscar. Ela gargalha. Beijam-se, em comemoração a tanto porvir.

“Não está tão quente, está agradável até”, Kathrin caminha contente pelo terminal, o casaco nos braços. “Você ainda não viu lá fora”. Assim que a porta ao exterior se abre, ela compreende. É tanto calor, tanto. E há algo diferente de outras temperaturas quentes com as quais se deparou antes; a pele fica pegajosa e, por cima dos braços, o casaco parece prestes a inflamar-se. Quando entram no carro, o ar-condicionado refresca um pouco, mas a dor de cabeça já está instalada: talvez do cansaço das tantas horas de voo, talvez da insolação nesses poucos minutos em solo pernambucano.

No trajeto para casa, Kathrin olha curiosa os entornos do que agora se torna seu país de morada. Preferia ter outra sensação íntima quanto ao que se apresenta. Quantas vezes pensou nesses preconceitos a serem evitados, na disposição para um contexto muito distinto do que viveu até hoje; mas alguma sensibilidade no corpo reage de outra maneira quando se está cercado pelo que antes era só hipótese. Vai ficar tudo bem, é apenas o estranhamento inicial, ela se convence.

O apartamento de Pedro é aconchegante, um oásis de reconhecimento por tê-lo visto nas conversas em vídeo, enquanto estiveram longe. “Casa”, ela pronuncia uma das poucas palavras em português que conhece, boas-vindas a si mesma. Eles deixam as malas na sala, circulam pelos cômodos e vão à cozinha. “Que barulho é esse?”, Kathrin pergunta e Pedro tem de encontrar brechas de silêncio entre os motores dos carros lá fora, para captar bem o som. “Esse tum-tum? É alguém tocando música na rua. Mas está longe. Bem que você falou que tem ouvidos sensíveis”.

* * *

Música: aqui, é quase onipresente. No começo, parece divertido ver a empolgação induzida, em quase todos os lugares. É como se houvesse, espalhadas, partes de uma daquelas festas temáticas de férias, na qual estereótipos tropicais — ajudados pela embriaguez alcoólica — servem de brincadeira a adultos, fomentam alegria. Kathrin filma, com a câmera do celular, gente dançando na rua, nos botequins, no meio de alguma atividade de trabalho. Nunca viu povo tão musical. Manda os vídeos, pela internet, para os pais na Áustria e para Ilse, a melhor amiga. Riem como se vissem um lugar que nunca poderia ser a residência dela. Mas agora é.

Só que tal qual acontece em toda festa — e toda embriaguez — o barulho constante, depois de algum tempo, começa a exasperá-la. Muitas vezes Kathrin quer silêncio, mas é acossada pelas batidas daquele estilo dominante, que lhe soa como mistura de guitarras caribenhas, programações de teclados de karaokê antigos, cornetas mariachi e vozes que — Deus do céu — vão das repetições mecanizadas do pop moderno até os arroubos mais melodramáticos dos filmes de Bollywood. Perde a graça rápido. E a quietude, que ela aprecia, é tratada como um mal a ser erradicado. Alto-falantes se projetam de todos os cantos — desde barracas de vendas até igrejas pentecostais — televisões permanecem ligadas onde quer que haja tomada elétrica, carros espirram o gosto musical dos donos pelas ruas. Até no modo de falar das pessoas há algo de música alta.

O corpo de Kathrin não processa tantos impulsos e decibéis da mesma maneira. Continua a reagir como se perturbado por um agente invasor, cada vez mais fatigante. Passadas as primeiras semanas, por mais que resista a se queixar com Pedro, a exaltação compulsória acaba por dobrá-la. “É sempre assim? Ou só na temporada de férias?”, ela vislumbra a possibilidade de ter fim a sagração generalizada do verão. Na mesa ocupada por eles no restaurante, os copos em tremores de vidro a cada golpe do bumbo, vindo de um carro parado na esquina. O namorado responde e ela pouco se atenta às palavras dele; o que a choca é perceber em si mesma o comportamento, até então, julgado bizarro: o de falar alto demais, para encobrir os ruídos de fora, que também se erguem continuamente. Acaba de cair no ciclo inflacionário de ruídos e sons, que leva todos a um estado de tumulto constante.

É muito discrepante de sua terra natal. “Terra natal”, ela repete em pensamento, na língua-mãe. Impressionante como a expressão adquiriu tons diferentes em tão pouco tempo. A imagem mental de Salzburgo recoberta de nostalgia e distância, como se no porta-retratos da memória o vidro se empoeirasse. A música seguinte tem início no carro ao longe e ela percebe: só ouviu o próprio pensamento, agora, por conta da pausa entre uma faixa e outra.

* * *

Perto do prédio deles, Kathrin descobre por acaso um grupo que treina capoeira a céu aberto. Transforma em ritual sentar-se à mesa do bar mais perto, de onde é possível observá-los. Na primeira vez, acende um cigarro, mas logo o garçom manda apagar, por ser proibido fumar ali. Ela não considera esse um lugar fechado — a mesa fica na calçada — mas aparentemente a presença do toldo é o bastante para a interdição.

Ver os capoeiristas compensa, eles a fascinam de verdade. Por mais estranho que possa parecer, são eles que mais a lembram do lugar de origem. As únicas pessoas, entre as conhecidas aqui, absolutamente centradas nas próprias ações, na atividade à qual se dedicam. Estão inteiras no que fazem, não há distrações forçosas, dispersões de energia e ruído. E são magníficos na realização da luta, da dança. A ela, parece mais dança do que luta. É tão belo de ver: pernas que se erguem velozes e rentes, mãos precisas nos pontos de força, composições detalhadas dos gestos. São como os músicos que tocam Mozart em Salzburgo: graciosos e potentes, indefectíveis nos movimentos. Ela se anima, só por acompanhá-los com o olhar. Negros como se eternamente resistentes ao sol, eles jogam até o cair da noite, que, infelizmente, chega rápido demais. No verão da Áustria, anoitece só por volta das 21h; é no inverno de lá que o crepúsculo se dá nessa faixa das 17h30. Nem a duração dos dias se alterará aqui?

* * *

A solução encontrada para a vontade de fumar é fazê-lo em casa. Kathrin vai para perto da janela do apartamento com o maço e o cinzeiro. Quando perguntou a Pedro se deveria ficar na rua, com seus cigarros — dadas as proibições e falta de alternativas — ele alertou para o perigo de assaltos, ataques. “Especialmente porque você é um alvo fácil, com sua aparência de estrangeira”.

Sua aparência de estrangeira. Pele tão mais branca que as dos outros, sem proteção do sol inclemente; olhos claros, também alérgicos a tanta luz. Cabeleira ruiva, que na Áustria era, no máximo, comentada com elogios esparsos, mas aqui se tornou uma espécie de atração turística reversa, chamativa aos locais. A forma mais frequente de interagirem com tal beleza forasteira é com as mãos. Parentes de Pedro, amigos e gente próxima dele, estranhos que ela nunca viu antes, atendentes ou clientes dos estabelecimentos aonde vai, não há diferença: todos se dão o direito de pegarem nos cabelos dela. Às vezes, riem dos sustos que leva; Kathrin protege os peitos, à altura onde as madeixas terminam e onde quase sempre são buscadas. E, talvez seja falta de entendimento dela, mas parece haver certo ressentimento nesses gestos de cordialidade. Algum rancor pelo que apreciam, mas não possuem.

“É normal isso, de colocarem as mãos na gente, mesmo quem a gente não conhece?”, pergunta a Pedro, que balança a cabeça em confirmação. Kathrin não consegue se acostumar; depois de algumas semanas, entra no salão e pede um corte bem curto, rente à cabeça. “Muito calor”, a moça com a tesoura repete para ela, como se falasse com uma criança que não entende quase nada. Kathrin sinaliza concordância, aprendeu logo essas duas palavras, por serem proeminentes no que há para se falar aqui. Muito. Calor.

“Eu preferia comprido”, o namorado diz, quando se depara com a novidade. “Ah, é? Eu também. Mas se todo mundo pegasse no seu pau quando sai na rua, você também ia querer resolver isso”. Ele fala para a companheira, que se afasta: “Vamos lá, é bem diferente. Ninguém enfiou a mão dentro da sua calça”. Kathrin volta para perto, irascível feito todo animal que se vê sob ameaça: “Não é tão diferente quanto você pensa. E faz eu me sentir perto de ter alguém enfiando a mão na minha calça. Você mesmo falou: é perigoso pra mim, na rua”.

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Conversando com os pais todos os dias, pela internet, ela percebe que suas experiências se abstraem na percepção deles. O corte de cabelo foi tratado como uma pequena excentricidade; quando lhes mostra algumas das músicas que agora a irritam, os dois riem do lado de lá. Claro, falta potência de som, falta constância e proximidade real, para que compreendam. Aos poucos, a distância entre eles parece aumentar, como se a deriva continental ainda estivesse em curso, afastando ainda mais o que antigamente foi uma só Pangeia.

Esse efeito se atenua quando o avô participa das conversas. Os pais vão à casa dele para fazer tais chamadas. Muitas vezes, deixam-na sozinha com o velho, que sempre tem histórias para contar e, mais do que isso, também a escuta com atenção. Pede para ensiná-lo palavras em português conforme as aprende. É bom ouvi-las na voz dele, adquirem outro aspecto, mais brando. “Saudades” é a preferida dos dois, sempre se despedem com o termo tão singular do idioma de onde ela mora. Quase todas as vezes, Kathrin chora ao desligar as chamadas.

Outro contato frequente é Ilse, a melhor amiga. Mas os diálogos com ela têm se escasseado mais rápido do que com os pais. Kathrin não tem muito que contar: nenhum amigo ou experiências interessantes lá fora, nenhuma perspectiva de atividades com sua formação profissional. Nada de novo debaixo do sol. Já as transformações na vida de Ilse perdem substância, por serem transmitidas só em discurso. O novo namorado dela, por exemplo, é descrito com todos os pormenores, tem fotos mostradas e ações narradas, mas continua a ser um estranho, de certa forma. Não se conhece uma pessoa através de explicações. E Kathrin também só pode ser ditada para ele; configurou-se como “a amiga que foi morar no Brasil”. Não é quem queria ser.

* * *

Chega a data de início oficial do outono; Kathrin a pesquisou na internet antes, marcou no calendário. Embora Pedro houvesse dito que, no Recife, ninguém acredita nas previsões meteorológicas, ela conferiu-as dia a dia: hoje é esperado que chova. Fica à janela, fumando os últimos cigarros do maço, enquanto aguarda a chuva prometida pelos satélites. Talvez as quatro estações se assemelhem aqui, mas está confiante de que haverá diferenças: hoje pode ser apenas o começo de algo semelhante a um outono veranil, mas já significa mudança. Imagina o desconhecido a partir do que viu antes: há de vir um inverno veranil e a primavera veranil, antes de ser retomado o verão veranil, esse excesso da qual se livra hoje.

O vento começa a soprar, caem os primeiros pingos. Ela inspira o ar molhado, a esperança na transformação. Tudo precisa ser renovado, em algum momento, é a natureza das coisas: bichos e homens têm seus momentos de recolhimento, de migrações ou colheitas, de extroversão; as plantas florescem, dão frutos, depois ressecam, guardam energia e brotam de novo. São imprescindíveis à vida esses ciclos, nada sobrevive na intempérie ou no cio permanentes. Ela sabe através do corpo agora: é necessário o tempo de se fechar e de se abrir, as transições. E essas chuvas hão de direcionar todos a um estado menos eufórico, é bom que seja assim. Ela sorri por um instante.

Dura menos de quinze minutos, a chuva. Logo o sol retoma o poder, esgarça as nuvens e arrebenta em luz amarela. As paredes não demoram a esquentar, do asfalto sobe o vapor estremecido. Carros abrem os vidros, um deles lança no ar a música que insiste, viril: “Senta, senta, senta”. Kathrin conhece ambos os significados do termo, passa a mão nos cabelos encurtados. Os termômetros se restabelecem. Hoje é todos os dias.

Quando Pedro chega em casa, faz piada sobre o aguardado início da outra estação. Pela primeira vez, Kathrin mantém a cara fechada com um gracejo dele.

* * *

O outono se vai como se não fosse nada, a passagem dos meses confirma: é mesmo verão o ano inteiro aqui. Pedro estava certo, aquela fala dele era para ter sido levada a sério. Kathrin sente-se como se traída, pelo fato de ele ter brincado tanto antes, diluindo previamente a gravidade dos avisos quanto ao que a esperava. Ele deveria ter enfatizado que é exasperante esse verão crônico, que há barulho demais, caos, tensão constante entre as pessoas acaloradas, e nada disso concede alívio. Nada se renova, só se reitera. Não que seja calor absoluto todo o tempo, há chuvas e dias nublados, mas são meras variações de humor da atmosfera, passageiras. Falta separação verdadeira entre fases, alterações mais consistentes. As folhas deveriam ter caído nesse hemisfério, a atmosfera se apaziguado; a luz deveria ter se tornado mais tênue, em tons de sépia e azul claro, inspirando sobriedade. O frio se anunciaria em seguida, convocando a diferentes atividades, demandas, temperamentos. É preciso sair desse torpor coletivo, dessa tensão de cio nunca concluído.

E pensar que em Salzburgo, a essa altura, a primavera tem nutrido outras belezas, coloridas, depois da neve. Nessas imediações da linha do Equador, o sol está sempre perto demais, dá a impressão de que o planeta nunca sai do mesmo ponto, apenas gira ao redor de si mesmo. Um presente perpétuo, dividido somente entre dia e noite, mas sempre o mesmo dia e a mesma noite. Sem alívio, sem horizonte. Plantada na estagnação, Kathrin resseca.

* * *

Por dias seguidos, ela volta à mesa de onde assiste à roda de capoeira, buscando ânimo na força daqueles rapazes e garotas, daquele mestre distante. Mas o espaço ocupado por eles, a certa altura, esvazia-se e permanece assim. No começo, Kathrin pensa que a ausência pode ser temporária, mas com o passar do tempo fica claro não ser o caso. Pensar que seria por conta do chamado inverno não faz sentido; o calor permanece o mesmo de sempre, nada se alterou na rotina de ninguém. Aqui está ela, na mesma mesa, rodeada pelos garçons de sempre, as ruas em seu moto-contínuo. Só os capoeiristas sumiram.

Sem domínio suficiente do idioma, ela pede que Pedro a acompanhe até o bar, para perguntar aos garçons sobre o que aconteceu. O diálogo que se dá à frente dela é incompreensível. Ao fim, o namorado explica-lhe, em inglês: “O mestre foi preso. Tentou proteger um aluno, pego por policiais, e se lascou junto”. A perplexidade nos olhos dela expõe mil perguntas, antes de ser pronunciada a primeira: “Eles eram bandidos, então?” Pedro indica as cadeiras para que se sentem. Pede uma cerveja, estende-se sobre os muitos sins e nãos cabíveis entre prisão e crime, entre policiais e pobres, culpados e negros. Kathrin não se conforma. Olha para o vazio deixado no lugar do mestre e seus alunos. O sol, ainda potente, parece que nunca mais vai baixar.

* * *

O sono dela continua prejudicado, mesmo passados meses, como se o fuso horário não se ajustasse. O problema é outro: o sol, penetrante pelas frestas do quarto desde às 5h da manhã. Pedro dorme sem problemas, depois passa os dias fora, na universidade. Ela não tem muito mais o que falar com os pais ou Ilse. Os capoeiristas se perderam. E dentro do apartamento, ou fora, faz tanto calor, tanto barulho. Ela, muitas vezes, lembra-se de uma Kathrin muito diferente dessa, que vaga pelos cômodos, à espera de nada. Quem é ela?

Entre todas as mudanças possíveis, a única que acontece é para pior: a chamada dos pais, tão fora de hora, provoca nela alarmes antes mesmo de atender. Nem mesmo calcula que altura da madrugada é em Salzburgo, quando o celular toca. Na tela que se abre, do aplicativo de vídeo-chamadas, os dois choram. Pedro, ao lado de Kathrin na cama, nada compreende das palavras, mas deve conseguir presumir — pelas reações, pelo cenário vazio na casa do avô, pelo choro — que o velho faleceu. É isso mesmo, ela confirma, antes de sair do quarto.

Na sala, está quente demais, apesar de ser noite há horas, de ser inverno no calendário. Tudo se configura absurdo: esse calor, o desarranjo do tempo e do espaço, a morte, a impossibilidade de se estar onde deveria estar. Ainda que fantasie os itinerários mais mirabolantes, a conclusão fatal é de que não há como chegar em Salzburgo, dar o adeus final ao avô. Kathrin odeia estar aqui, odeia a si mesma, e seu ódio é constituído de desamparo.

Pedro a abraça no sofá, ela treme em choro. Ficam ali até o sol nascer. O que não tarda.

* * *

“Existe alguma palavra em português para quando as coisas ficam piores do que insuportáveis?”, Kathrin pergunta com olhos trincados, dias depois. Pedro responde com uma negativa. “Eu imaginei. Acho que não existe em nenhuma língua”.

Ela precisa, de alguma forma, ter alívio. Alívio de tudo, de si mesma. Sair da letargia perturbada. Mas não há trégua: o luto, somado às angústias anteriores, a deixa mais fragilizada às apoquentações de buzinas e músicas, gritos e risadas, precariedades e excessos de toda espécie. Outro dia de sol e mais outro. Kathrin não consegue comer, não consegue ficar parada, nem iniciar qualquer coisa. Fica fechada em casa, em meio às janelas incandescentes e as paredes febris. A morte do avô é vasta, impõe outra dimensão a tudo; mas os ruídos da vida e da alegria lá fora não se remodelam, continuam a zunir e picar feito mosquitos. Enxames deles.

Nas ruas, a cidade que já lhe parecia hostil se torna doentia: o lixo espalhado tem mais lixo, o cheiro de mijo entra mais alcalino pelas narinas, as rachaduras nas calçadas se aprofundam, a miséria impõe outro nível de horror, os ruídos das pessoas são mais pontiagudos. Risadas e falas altas, gritinhos de crianças, correria, música para dançar: o absurdo nauseante da alegria.

Ela decide ir à farmácia, precisa comprar algum remédio para a dor de cabeça, a apatia e tantas outras coisas. A melancolia. Existe medicação suficiente para tudo isso? Na entrada, um homem grita ao microfone as promoções de remédios. Mexe com Kathrin, que só entende, ao final, a palavra “gringa”. Todo mundo ri no balcão de atendimento.

Todo mundo ri. É tanta alegria, tanta. Por todos os lados, a alegria a encurrala. Crianças correm entre as prateleiras de medicamentos, berrando de alegria. A música no sistema de som, assim que o anunciante para, bombardeia alegria por entre as paredes. Não há resguardo possível. Kathrin menciona à atendente os sintomas decorados em português, vistos no aplicativo de tradução. Recebe comprimidos que desconhece e nos quais deposita pouca fé. Queria dizer: o que precisa ser detida é toda essa alegria, essa terrível alegria. Ela chora no meio de todos.

* * *

Se fosse só luto pelo avô, já teria passado. Se fosse só luto pelo avô, não estaria presente nela desde antes: essa desolação, esse estado do qual nunca sai. Weltschmerz. Kathrin acende cigarros que se queimam até o fim, sem que ela sequer os leve à boca.

É primavera. Que diferença faz? Nem as flores realizam seu potencial completo aqui. Quase não se vê cores brotarem pelos caminhos, por entre as calçadas cinzas, quebradas.

Ilse, após sinalizar preocupação tantas vezes, diz em uma das chamadas por vídeo: “Eu decidi que vou te visitar no fim do ano”. Kathrin, depois que desliga, percebe nem ter agradecido. Não foi indiferença, foi alguma outra coisa que deixou de ser acionada no raciocínio. Parece que em seu corpo os fios de energia se derreteram.

* * *

No dia da chegada de Ilse, Kathrin espera do lado de fora do portão de desembarque, olha-se no reflexo do vidro: a amiga deve estranhá-la bastante. Além do cabelo curto — já visto nas chamadas por vídeo — a pele adquiriu outro tom e textura, as roupas parecem de alguém muito diferente dela. Encosta o nariz ao ombro nu, até seu cheiro mudou; tem algo de maresia.

A amiga surge, as duas se abraçam e começam a chorar juntas. Não são lágrimas do mesmo tipo. Elas caminham pelo aeroporto, têm mil coisas para falarem uma à outra, mas não ultrapassam perguntas e comentários banais, sobre o voo, o aeroporto daqui, o clima. Um constrangimento novo entre elas demora a se dissipar. Nos dias seguintes, a presença da amiga austríaca traz algum alento: conversar o dia todo na língua-mãe, ter perto de si essa voz germânica — e inteira, sem o achatamento da transmissão eletrônica — atentar para pequenos hábitos, microscópicos, que ela já perdeu e agora relembra na outra. Tantos detalhes de familiaridade, a companhia de alguém que também se sente morrer pelo calor. É verão de novo, porque nunca deixou de ser. Ilse tem a vantagem de estar na posição de turista; sabe que não se afogará nessa imensidão de sol e caos, só faz um breve mergulho e volta para respirar no seu habitat. Isso lhe dá a liberdade da qual Kathrin se perdeu.

Quando saem em viagem — itinerário bolado por Pedro até Maceió, indo pelo interior e voltando pelo litoral — a visitante tem disposição para conversar com ele sobre o Brasil; faz muitas perguntas e ouve longas explicações. A História do país, os caminhos pelos quais chegaram até a situação atual. Kathrin percebe, escutando a amiga falar estranhamente em inglês, o quanto deixou de descobrir sobre o lugar onde veio morar. Nunca fez todos esses questionamentos; mal chegou aqui, perdeu o fôlego e não recuperou mais. Pedro, ao volante, explica sobre a colonização, as capitanias hereditárias, a escravatura e o tráfico negreiro, a república e as ditaduras.

“Está tudo aqui ainda”, Kathrin quebra o silêncio de repente, após observar as grandes fazendas na estrada, os casarões coloniais, a presença intimidadora de militares. Pedro a provoca, dizendo que na Europa não foi muito melhor, com todas as batalhas sangrentas e os sistemas de dominação. Também há os muitos resquícios da História lá. Aliás, em Salzburgo tem aquela fortaleza medieval, acima de toda a cidade. “Eu sei, não estou dizendo que lá foi melhor. Só é diferente. Depois de tantos séculos de guerras e revoluções, das muitas reconfigurações dos territórios… As coisas mudaram mais, acho. Aqui parece estar tudo ainda sob os mesmos controles, desde o começo. Não se supera o começo. É o mesmo estado, do qual nunca se sai, uma espécie de presente perpétuo. E, sim, nós ainda temos a fortaleza, mas ela não é mais o que era, ninguém mais fica preso nas masmorras de lá. Nas daqui, sim”. Ilse olha para Pedro, esperando ver qual será a reação. Ele concorda, resignado. “É desolador”, Kathrin murmura, antes de cair em silêncio de novo.

Em meio às plantações, ela vê um menino cravar enxada na terra. Pede que Pedro pare o carro. Desce e vai até o garoto, negro como se eternamente sob o sol mais opressor. Não deve ter mais do que oito ou nove anos de idade; é pouco maior do que a enxada. “Como você se chama?”, ela pergunta em português, já aprendeu um tanto do idioma. “Antônio”, quase nada da voz dele sai da boca. “Onde você mora?”, esforça-se para evitar sotaque muito diferente. “Aqui, ué”, o pequeno fala em tom quase aborrecido, como se a única constatação possível fosse esse lugar, de onde nunca saiu. Um senhor se aproxima, também negro, de cabelos grisalhos. Lembra o mestre de capoeira, mas tem outro aspecto. “Tudo bem, dona?” Ela balança a cabeça, tenta o melhor sorriso do qual dispõe agora. Pedro vem até eles, é perceptível no companheiro o temor. Tanto medo aqui no Brasil, Kathrin pressente; enxerga-o manifestado também nas maneiras e nos olhos do velho e do menino, precavidos contra ela. É como se estivessem todos aqui sob alguma ameaça invisível, ou como se para cada pessoa as demais representassem perigo. Cada um esperando ser predado pelo outro. “O senhor é pai dele?”, ela pergunta e, antes que o senhor responda, Antônio se antecipa: “Vô”.

“Vô”, ela repete. Fica um tempo em silêncio. “Você mora aqui também?”, pergunta a ele, cobrindo os olhos do sol, que não aguenta. “Sempre morei, dona”. Há quietude nesses campos, ouvem-se aqui os detalhes pouco percebidos na cidade. Ela tem poucas palavras ainda a oferecer, eles também. “Para ir a Maceió, é por essa estrada mesmo?”, Pedro atravessa a conversa, na intenção de disfarçar motivo justificável para a abordagem. Não precisam disso, Kathrin tem vontade de dizer; por que sempre essa mania de disfarçar as tensões? Qual é o próximo passo: ligarem o som alto no carro, dançarem ao redor das enxadas, dessa criança na lavoura? O mal-estar geral, aqui, resplandece feito o sol. E, tal qual, não se olha diretamente para ele.

Pedro põe a mão no ombro de Kathrin, “É melhor a gente ir embora”, diz em inglês, código cifrado aos outros dois. Ela se volta para Ilse no carro, que em breve voltará a Salzburgo; olha para o namorado, que pode transitar entre estados e países; Antônio e o avô, que nunca saíram nem sairão dessas terras. Baixa o rosto e vê sua sombra inscrita pelo sol no solo desse lugar. “É melhor a gente ir embora”, repete, sem saber ainda o alcance exato da frase.

Rafael Gallo nasceu em São Paulo em 1981. É autor de Rebentar (Editora Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2016, e de Réveillon e outros dias (Editora Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012. Tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações na França, nos Estados Unidos, no Equador e em Moçambique.