quatro poemas de João Augusto

I

Não sei soletrar a palavra mundo
sem abrir nela uma rosa, uma infância.
Queria fazer da vida um objeto de arte.
Fazer de cada passo um passo com alguém.
Como se cada derrota sobrevivesse a si mesma,
e um balão subtraísse do ar a solidão que voa
entre mim e você.
Me isolo num verso que não vem.
Escavo um poema de meu tempo.
A palavra só existe onde o silêncio permite.
É preciso amadurecer, como algumas palavras,
como essa barba que se vai desenhando branca.
O motor dos dias esconde de ti a cidade,
o reino, as fadas.
Sou menor que todas as coisas que
ainda não existem.
Porque cumpre em qualquer nascimento
alguma alegria.
Toda a minha vida está incomunicável.
Preciso desembrulhar o rosto do mundo
e dar um nome ao que desconheço.
Preciso fazer da loucura um pouso para o amor.
Preciso soletrar a palavra mundo
sem abrir nela uma partida.
E, mesmo se partir,
levar nas mãos alguma aurora.

4 de julho de 2012.

VI

“Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.”
(Edgar Allan Poe, em )

Como Poe, amei sozinho,
o que sozinho me restava amar.
A vida começa atrasada.
Tinha, no irrespirável das noites sem ar,
uma secura de estrelas no peito.
Carregava duas cores no bolso,
o branco e o nada.
O pouco era longo e farto.
Na madeira gasta dos olhos,
um arco-íris de carvão sustentava o céu
que era impossível inventar.
A vida, irreconstruível do fim para o começo.
Na alucinação dos dias,
a admirável lentidão do amor,
que nunca florescia.
Amar sozinho é escrever para o silêncio.
De dentro dos olhos pretos da vida,
uma rosa explode o escuro,
tão universal como a fome,
como o ódio,
como o homem.
A vida que delira e inflama,
lenta e sozinha,
como um punhado de amor,
deixado pelo caminho.

XIX

A vida falha em mim quando não estende estrelas pelo lado de dentro. Sou alguma coisa entre o mundo e o verso, que vomita o amor e apaga o destino. Mas escrever me oferece um começo. Ainda há vagas para palavras desempregadas. O mistério natural de tudo que não poderá ser claro. Uma fantasia colhida no tempo certo pode se revelar a mais lúcida verdade. É para isso que escrevo: ranhurar na morte alguma ilusão. Vende-se a parte limpa da vida. O abraço, que ainda ontem inaugurou o amor. Meu coração pensa o que a nova ciência ignora. O tato antigo da fala com a fala. A biografia lenta do gosto dos lábios. A antiga tecnologia dos olhos, como as águas, que nunca se perdem; como os rios, que sempre se encontram.

Beirute, 28 de dezembro de 2017.

XXIX

Tarde as tendas da alma se abrem ao sol. Tudo é tão perto, e distante o amor, paralisado. Escrevo desarmado de palavras, como quem planta abraços de papel. Aqui assento meus pensamentos. A inatingível espera da vida que não és. A cidade está vencida, as flores, os ídolos, a vida vencida. Deixa que alguma luz limpe o teu rosto. Que o sal marinho queime as tuas tardes de melancolia. Não, o tempo não chegou de completa justiça. Somos todos inocentes. Seres de avolumados cabelos, pernas e tônus muscular. Temos olhos e tato. E fábricas onde se fabricam cartazes e sobremesas de medo. Onde te escondes mais, é ali que existes. Guardo uma canção antiga num peito cansado. Guardo apenas o ar necessário para encerrar este poema. Minha casa é a rua, a ruína, o relento. Mas meu corpo ainda respira, e deseja amar.

João Augusto já foi premiado em concursos de prosa e poesia. Tem alguns livros publicados. O mais recente, de poemas, A última estrela tropical (Editora Patuá). É um dos curadores da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto. Já escreveu para cinema, produziu e dirigiu documentários. Tem peças inéditas de teatro. Na imprensa, atuou como produtor, revisor, repórter, editor de jornal, gerente de reportagem, diretor e apresentador de rádio e TV. Casado com a professora Elaine, João é pai da Letícia, estudante de Medicina, e do músico Gabriel. João escreve porque ama.