cinco poemas de Daniela Delias

fúria

sobrevive-se à fúria extrema das manhãs
à memória das portas que abríamos em silêncio
desejando que o amor nos ensinasse a cair

não tão alto, dizíamos
não tão longe

depois, alinhávamos as pernas
estendíamos mil pontes
e partíamos e partíamos
como se destinados ao cume

sobrevive-se, suponho
às cidades exiladas de nossos olhos
e à lembrança das janelas
que encostávamos um pouco
toda vez que distraíamos a morte

desterro

se todas as previsões estiverem corretas
amanhã ainda teremos chuva
e milhares de mulheres e homens
partirão de seus desterros
sorrindo ferozmente pro escuro

que importa se um homem de olhos terríveis
afunda suas garras e botas
contra seus rostos insones?

se todas as previsões estiverem corretas
amanhã não comerão os restos
não descerão aos fossos
não dobrarão os joelhos
a um deus que fale tão pouco

caixa

desinventar a estrada
que vai dar nas mesmas ilhas
partir com os dedos
as ruas que vão restando
reter entre os lábios
o mapa onde escondíamos
a palavra eletricidade
dizer outra vez teu nome
e te ver guardar o meu
entre as coisas mais selvagens

pele

a verdade
é que meu ombro não comporta
um pássaro negro

já tenho este mapa
tatuado em minhas costas
este céu de linhas vermelhas
este corpo tornado templo
de todo desejo e selvageria

e você sabe:
palavra alguma detém a jaula
palavra alguma impele o voo
palavra alguma alcança a porta

é sempre do olho o último grito

lanças

aconteceu de chover tanto
que cogumelos imensos
nasceram no concreto

justo hoje que não diria
dos punhais sobre o sonho
vesti minhas luvas
cerquei-me de lanças
vi meu coração partido

há coisas
que simplesmente nascem:
não se pode dissuadir a vida
de sua natureza terrível

Daniela Delias nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul. Autora dos livros de poesia Boneca Russa em Casa de Silêncio (Editora Patuá, 2012), Nunca estivemos em Ítaca (Editora Patuá, 2015) e Alice e os dias (Concha Editora, 2019). Tem poemas publicados no Livro da Tribo, em revistas literárias e no blog de poesia Sombra, Silêncio ou Espuma. É psicóloga e professora na Universidade Federal do Rio Grande. Mora na Praia do Cassino, em Rio Grande.