cinco poemas de Fiori Esaú Ferrari

apesar das flores

Haverá um dia, apesar das flores,
mais seco,
avesso ao carinho,
afiado e áspero.

Ele nascerá incólume,
totem.

Alguma esperança
será esmagada
e na praia populações inteiras
recolherão seus poucos costumes,
canções de trabalho,
o lado tenaz dos símbolos.

Haverá um dia de mais atrito,
quase nenhuma suavidade,
em que apoiaremos a cabeça
no banco de mármore
pra chorar.

E o que diremos
serão sílabas de vocábulos
quebrados,
extratos de uma pronúncia inaudível,
pequenas dispersões de radicais
no palato, nos lábios, na rua.

E estilhaços de um verso
incompreensível
pontilharão
o mar alto,
sementes em terra líquida.

Eu aprendi que toda lágrima é irmã mais nova do oceano.

sem parada

Eu escapei uma vez, a par de tudo.
Fugi com a franqueza
dos que sentem o primeiro
frêmito da morte
e não reconhecem a irmã que chega,
fugi às margens
do dia,
carregando um livro,
palavras dispersas e um arquétipo do futuro,
deixando fragmentos de mim,
meu corpo em estranho
gesto na esquina,
hemistíquios onde a cesura
ainda silencia minha vida,
e silencia agora,
a respiração no terço das mãos do meu pai,
a pausa triste das mulheres da igreja
diante do mistério mais doloroso
que é sempre Verônica
e o sangue da face do amado
eterno no tecido,
fragmentos de lágrimas,
de canções no quintal e das amoras,
viver foi as frases replicadas
de um nascimento,
as pessoas chegando e partindo
e o presente sobre o roçado,
o presente sobre a ação humana,
o estar porque não há a essência,
o estar na praça, na história,
na colina,
tão pontiaguda flor,
o nascimento de deus
e o que fazer com isto,
e o que fazer com isto?

pablo

A conversa incerta na esquina
onde poucas folhas
confessavam o outono.

Eu reunia gravetos,
construía com calma
e indiferença meu ninho,
ações da longínqua Cuba
eram a voz de Pablo Milanés
forjando ternura,
a esperança no muro.

Ainda que os porões se contorcessem
de terror e sombras,
ainda que a batida
da ordem
monocórdica
monocromática
fizesse da minha infância
lugares de ouvir a distância
e ver profundezas
abissais,
eu criei na face grandes olhos
de peixes tristes.

Atravessava o azul, vulto.

Mas, no breve espaço da ausência,
(e a sinto tanto hoje)
Pablo Milanés
me dava a dispersão da luz,
a decantação da lágrima
e surgia o diamante puro.

É lógico que eu era assíduo das pétalas.

aqueles dias

Eu posso até dizer
que as coisas
demoradamente
se tornam densas
e neutras
alongam as sombras,
este arreio,
a embocadura,
as tralhas.

Quem colocou ruído nisso tudo,
a montaria de um cavalo solto
que sabe da fazenda e da ternura,
um meio de sonhar
no desespero do latifúndio?

Como não mastigar esse fruto
através
sem situar alguma queda,
uns brinquedos que não deram certo,
o deslocamento míope dos olhos
que se enganaram de envelhecer
ainda em criança?

À solidão da lâmpada do quarto
juntavam
vozes baixas de cuidado
no corredor.

Ao pegar da noite,
nas coisas rarefeitas,
as ações do dia iam se acalmando,
se tornando mitos,
se despindo de política e terno.

O traçado de lã,
que as agulhas envolviam
e dançavam
e teciam,
aplacava as violências
dos costumes e das regras.

Concluíram:
— Este menino tem verme.

Parecia doença.
Era solidão.

artesão

Facas dançam.
Lâminas solares,
lanças atiradas
no azul
e o verde
timidamente
preparando o fruto.

O artesão do plantio
atravessa o campo
e sua roupa vermelha
é um toque de terra
na tela ainda em outono.

Borboletas destrincham
um saber longínquo
gestado no casulo.

Morrem breves.

Borboletas nascem no outono.

Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. Professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa na prefeitura de São Paulo. Seu último livro, Variações do Exílio, 2019, foi lançado pela Editora Penalux.