Observava, faminto, as duas meninas. Claudete e Marina girando. Rodopia céu pra cima. Rodopia verde aos lados. Rodopia chão, terra esvoaçante, frágil marrom. Partículas poeirentas tingindo o azul de barro seco. Cantam a cantiga rápida, mastigando as palavras. Ao soltar as mãos uma da outra, são arremessadas pela força centrífuga ao chão. Gargalhadas espalham-se pelo mato. Sol das quatro da tarde. Formigas em fila na terra tremem ao terremoto das titãs. Um Jaó distante. Gritaria verde. Maritacas. Claudete pele canela, Marina pele carvão. Vontade de beijá-las. Naqueles tempos ainda sabia o que era ser cabra inteiro. Gambé me segurou.
— Tás doido? Não vinhemo pro sertão deflorá virge, Cuiabano.
Não tinha me atentado pra pouca idade das duas. Irritei-me com o sol, pelos do braço e da cabeça coçando. Terra de ladrão de cavalo. Odiava ladrão. Meus pais tiveram a vida desgraçada por bandoleiro no Mato Grosso. Queimaram nosso sítio. Pai tinha sobrenome Correia, mas mudou pra Correto pra deixar claro de que lado da vida estava. Quando furtei goiabas no pomar da véia torta, me encheu de cacete. Pegou na vara de marmelo e sangrou minhas pernas. Quando joguei o gato no tacho de doce de banana quebrou um cabo de vassoura piaçava nas minhas costas. “Prefiro ter filho defunto que filho bandido”. Ser honesto em terras onde só manda o artigo 44? Onde o calibre é a lei? Quem tem inimigo não dorme nunca. Rajadas de piripipi eram normais por lá. Tretas de coronéis sempre. Lembro da cara de ódio dele quando os vagabundos do Wa’uburé Negro botaram a 44 na cabeça da Mãe e disseram que iam violar ela e a Mana de cinco anos se Pai não entrasse em acordo com o Doutor Salles. Mãe branca, Pai preto e eu dessa cor sem nome. O sentimento de impotência do Pai, seu olhar repentinamente frágil parecendo que ia desmanchar, aquilo foi o pior castigo pra mim. Credo. Cheguei a pensar que Pai ia chorar. “Se ele chora, eu implodo.” Ia ter que pular na orelha do Wa’uburé e arrancá-la com o dente, mesmo sabendo que me matavam. Mas era a única coisa que se podia fazer. Lágrimas do Pai valiam mais que a honra da Mana. Ninguém podia roubar aquilo dele. Pai chorando? Desaba o céu sobre nós e esmaga tudo que nos sustenta. Senti o osso molinho, molinho.
— Marina, sua peste. Tio me mata.
— No duro?
— Cê sabe que é verdade.
— Tua mãe volta mais, não?
— Sei nem se tá viva.
— Queria ser igual seu tio Rabo Gordo.
— Credo cruz, creio em Deus pai.
— Vida de bicho solto é tão bonita.
— Que o que, Marina? Se nóis casa com algum hómi menos imprestáver já tamo no lucro. Muié bicho solto?
Nessa hora ouviu-se baque. “Mapinguari?” “Pé de Garrafa?”. Grito doido. Marina e Claudete. Coração serelepe rebolando peitos púberes. Suspiro de virgem. Rabo Gordo tinha rastreado onça-canguçu dia inteiro. Comera-lhe um bezerro. Marina, engolindo angústia, queria averiguar. Franziu o cenho, como o pai fazia. Sol cocento. Arrepio na espinha: “Passa morte que eu tô forte”. Viram um bugiozinho feio demais se pendurando nas árvores. Barba e bócio, macaquinho barulhento. “Era bugio, Claudete, afe que cagona”. Flauteado de Sabiá-laranjeira lembrava que entardecia. Melodia agudinha agradava. Claudete precisava cozinhar pra vô Felipinho e Rabo Gordo. “Vida miserável”, pensava Marina. Claudete achava que miserável era complicar a vida. Marina, tão sonhadora, não se conformava com único destino. Caminharam de mãos dadas pela estradinha de terra, no sentido contrário à vara de porcos que Carlão Vaca Louca, filho do maquinista, tocava. Cabelos fartos e negros, nariz grande e bem desenhado, peito de pomba. Claudete olhou pra ele até que o moço tímido se sentisse obrigado a cumprimentá-la.
— Tá facinha, hein, Claudete?
— Cê que não gosta de hómi, Marina.
— Credo, fia, meu mano cheira calçolas até da mamãe. Homem é âncora na vida.
— Por que ele apronta dessas?
— Sei lá, cheira as calçolas sujas de toda mulher que acha na frente e mexe no pingolim até espumar nata do leite.
— Até as suas? Que nojo!
— Hómi, Claudete. Que cê acha que o Carlão Vaca Louca vai colocar dentro d’ocê pra ter fio?
— Não tenho nojo de espuma de hómi, Marina, mas dessas coisa de cheirar calçola suja.
— Mano diz que tudo nas muié é sagrado, mas suspeito que seja balela. Hómi gosta de buraco quente. Já viu quantidade de moleque barranqueiro que propaga em Penápolis?
Deviam separar-se na encruzilhada, mas Claudete estava tão empolgada em encontrar Carlão que caminhou até a casinha de Marina.
Meio da mata, entre aroeiras e angicos — jacutinga no céu, uma família de quatís correndo no chão — a uns 50 passos largos do bugio berrante, Tenente Galinha esfolava um homem lentamente. Eu não gostava desse procedimento. Por mim era bala e pronto. Nem bicho eu gostava de fazer sofrer.
— Bandido gente tem que surrar bem, cambada.
— Sou bandido não, moço.
— Alguém, aqui é moço, Serelepe?
O jovem golfava sangue. Porrada cantava. A Captura procurava ladrão de cavalo e cigano. Éramos policiais da Força Pública convocados para missões especiais no interior do estado. Trombamos o rapaz; pele escura, roupa velha. Se engruvinhava atrás daquele sítio, casinha barreada de pau a pique. “Sou bandido, não”. Se não era bandido, que porra estava fazendo atrás de casa de família com aquela calcinha na mão? “Tarado também vai pra vala”.
Naquela tarde Marina não encontrou o mano em casa. Claudete ficou proseando um pouco e depois se mandou pra cozinhar pros parentes. A mãe de Marina se preocupou com o filho mais velho. Moleque andava estranho, muitas espinhas na cara, voz grossa, sempre agitado. Precisava pedir pra Dona Hermínia rezar um terço pra ele, mas o filho nunca voltou. Encontraram o cadáver desfigurado e apodrecido num charco.
Fred Di Giacomo é escritor e jornalista multimídia, caipira punk, nascido e criado em Penápolis, sertão paulista. Seu romance de estreia Desamparo (Editora Reformatório, 2018) esteve finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2019. Quando dava aulas de jornalismo para jovens de periferia na Énois, coordenou e editou o Prato Firmeza: guia gastronômico das quebradas de SP, finalista do Prêmio Jabuti 2017. Tem sido convidado para debater literatura e narrativas multimídia em eventos como a Primavera Literária Brasileira, em Paris, a Feira do Livro de Frankfurt e a Campus Party. Toca contrabaixo e rabisca versos na Bedibê.