A mulher engoliu um Pinóquio quando era criança. Não lembrava desse episódio e espantada e incrédula vê o médico apontar na radiografia a exata localização do boneco, ao fim da traqueia, onde deveria estar o brônquio direito. Não é grande, deve medir uns oito centímetros de altura talvez, e na chapa de acetato, se percebe no brilho branco-azulado, o seu contorno humano, o seu nariz de mentiroso, e mesmo o chapeuzinho pontudo. A mulher imagina que ele está vestido, pois não faria sentido um boneco nu apenas de chapéu, mas não consegue distinguir se está de botas ou descalço, e pensa que não é nada impossível que ele esteja despido, mesmo de chapéu, o que a faz lembrar rapidamente de um conto de fadas em que um rei estava nu, embora pensasse que estivesse vestido.
O médico numa voz calma e confiante pergunta se seus pais ou outro familiar poderiam elucidar as questões que surgem a partir da inequívoca imagem: com quantos anos ela estava quando engolira o Pinóquio? Por que não se fizera nenhuma cirurgia para tentar extraí-lo? Se era de plástico ou madeira, uma pergunta importante, afinal, pois se fosse de plástico, seria uma réplica, mas se fosse de madeira era um autêntico Pinóquio, o que certamente teria consequências diversas. Doera? Chorara? Sentira imediata dificuldade para engolir ou respirar?
O consultório é espaçoso, há diplomas e certificados na parede, e em um quadro se pode ver todo o sistema pulmonar em relevo. Sobre a mesa de vidro alguns porta-retratos, um porta-lápis preto com detalhes em bege e o laptop prateado atrás do qual o médico fala como se estivesse defendendo uma tese acadêmica, a voz monótona e ligeiramente anasalada. Os brônquios são os tubos que levam o ar aos pulmões, estruturas que se assemelham a árvores, termo que aliás se usa, “árvore brônquica”, que é o conjunto formado pelos brônquios principais e suas ramificações pelos pulmões. Fala-se em brônquios principais ou de primeira ordem, porque existem ainda os brônquios de segunda e de terceira ordem. O brônquio direito é menor, mais vertical e mais largo que o esquerdo.
Mas a mulher não escuta nada ou quase nada que o médico diz àquela altura, já que sua atenção se dispersou no exato momento em que ele proferira a palavra árvore e ela lembrara que comera brócolis no almoço do dia anterior e que possivelmente faria mais sentido se as ondas eletromagnéticas detectadas no alvo, que era ela, revelassem que seu brônquio direito tivesse se transformado num talo generoso de brócolis com centenas de pedúnculos florais densos e verde-escuros.
A mulher aperta a mão do médico e sai com requisições de exames soltas de maneira desleixada dentro da bolsa. Avisa à secretária, sem muita convicção, que telefona depois para agendar o retorno. A secretária é uma moça magra e morena, muito bem ajustada ao uniforme cor-de-rosa, e com unhas pintadas de base e decoradas com flores de pétalas vermelhas. A secretária balança positivamente a cabeça e sugere um sorriso enquanto entrega o recibo pela consulta.
A mulher desce três andares de elevador e se vê na rua, sem muita noção do que deve fazer em seguida. Vai caminhando pela calçada, compassadamente. O dia está frio e ela não colocou sapatos adequados por isso sente os pés um pouco adormecidos. Ela se sente perplexa e seu percurso é realizado ora como se estivesse anestesiada, ora como se pudesse sentir a ponta do chapéu, ou seria do nariz?, do Pinóquio, a espetar-lhe a garganta.
Por mais que remexa nas memórias não lembra do dia em que engoliu o boneco, nem mesmo de a família tocar nesse assunto, mas aos poucos uma vaga noção de que tenha realmente acontecido começa a se infiltrar em pequenos flashes, como num sonho. Então começam a surgir os questionamentos que lhe fugiram diante do médico. Se eu engoli mesmo um Pinóquio, isso significa que alguém mentiu para mim e eu aceitei a mentira ou que a mentirosa sempre fui eu, e de um modo mecânico e pouco inteligente, dei um jeito de fazer com que isso se tornasse parte de mim? Se meu brônquio direito foi substituído pelo Pinóquio isso significa que ele está vivo e é por ele que respiro? Se é assim, é impossível removê-lo? Se ele está vivo isso significa que a cada mentira que eu possa eventualmente contar seu nariz cresça e se pudermos observar isso, seu nariz crescendo entre as capilaridades do que antes seria um brônquio, é possível que perfure cartilagens, ossos, músculos e me fure a garganta de dentro para fora me matando ou, na melhor das hipóteses, me transformando numa aberração a olhos vistos? É possível conviver com ele? Há algum remédio ou tratamento que possa controlá-lo ou até mesmo matá-lo?
A mulher se desespera de que o médico não esteja lá para responder às perguntas que teimam em jorrar, atropeladamente, e pensa em retornar correndo ao consultório o que seria, decerto, uma loucura, pois não poderia invadir o horário de atendimento da mulher seguinte, aquela senhora de vestido azul que com toda a certeza sentia os efeitos da menopausa, o suor teimando em escorrer da testa, a afobação que, indisfarçável, ameaçava romper os limites do busto, decote afora. Então a mulher pensa que talvez o Pinóquio, o seu Pinóquio, seja o efeito de uma menopausa precoce, afinal no mês anterior a menstruação atrasara um tanto, coisa que a assustara na possibilidade de uma não planejada gravidez. Entretanto duas semanas depois o sangue fluiu como se nunca tivesse faltado ao compromisso, e ela prontamente esqueceu a ausência, desculpando o corpo como desculpara sua memória pelo descuido.
A mulher dá voltas em torno de si mesma enquanto caminha e se pergunta, no meio a tantas questões, se o Pinóquio terá uma voz e se a tiver não se confundiria com a sua. Em desespero, começa a cogitar que talvez aquela faringite que a fez perder a voz no dia da apresentação do trabalho, quando ainda fazia faculdade, não teria sido uma abrupta substituição da sua voz pela voz do boneco, coisa que poderia soar absurda uma semana antes, mas que agora, depois do exame e da consulta, não parecia nada inverossímil. A mulher para por um instante e retira da bolsa um pequeno estojo redondo que se fecha sobre si mesmo em dois espelhos, um normal e outro de aumento, depois de abri-lo se mira detidamente para constatar que ainda é ela a dona do seu rosto e não o Pinóquio que se alastrou para fora de si.
A mulher continua andando e anda horas até que chega à entrada do seu prédio. O primeiro portão é aberto, ela fica entre as duas portas de vidro por instantes, o segundo portão então se abre e o porteiro a cumprimenta. Ela o cumprimenta de volta, mas na verdade sua percepção não registra essa interação. Um outro problema se agiganta em sua mente, como contar qual é sua doença, como detalhar e exibir o exame que aponta a presença de um boneco mentiroso de madeira (ou plástico, caso seja uma réplica) onde deveria existir um brônquio. A mulher entra no elevador, suas paredes metálicas e frias fazem disparar o seu coração porque por um instante se imagina morta, dentro de um caixão sendo conduzida terra abaixo, embora claramente o elevador ascenda ao décimo quinto andar.
O elevador chega, finalmente, ao destino e a mulher hesita, entra ou não em casa? Não entra, fica parada diante da porta procurando um meio de entrar, de chegar ao apartamento em que vive. Pode ficar uma eternidade ali, pensa. Ou pode fugir, recomeçar a rota sem rumo entre ruas e calçadas, com o Pinóquio que ela traz consigo e que de certo modo, ou de modo total, agora é ela. Não precisa esperar muito, a porta se abre, o marido que iria comprar pão se depara com ela, imóvel. Então a mulher fala, e nessa hora não se sabe se é ela mesma ou o boneco quem flexiona as palavras da curta frase: Eu tenho câncer.
Micheliny Verunschk é autora dos romances O amor, esse obstáculo (Editora Patuá, 2018), O peso do coração de um homem (Editora Patuá, 2017), Aqui, no coração do inferno (Editora Patuá, 2016) e nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014), projeto com patrocínio da Petrobras Cultural. Também é autora do livro Geografia Íntima do deserto (Landy, 2003), finalista do Prêmio Portugal Telecom de 2004. O romance nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida foi ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura 2015.