três poemas de Edimilson de Almeida Pereira

PORTRAIT DE FAMILLE

1

pela escarificação no rosto
cada um se dá a ler
como um jornal diário

em verdade, os textos
nessa pocilga rascunham
um lugar em trânsito

uma sílaba traindo a outra
coloca no mesmo ringue
francisco e licutã

pelejam em nome do
_____ab al
_____to
_____em língua selada
esfolam-se francisco e licutã

para salvar o crânio
_____e seus dividendos
afiam a conversa no sangue

cada um de seu canto
não mede que está no outro
talvez, por isso,

se devorem
_____para ler-se desde dentro

2

sob a escarificação outra
_____miragem
esperando a mão
tocar-lhe as vértebras

outra que não a urina
_____e as fezes
nem a coleira do cão — outra

que sitiando os piolhos
escala os anônimos — outra

CAMPO GRANDE

brumado

guinda_____careca

sapucaí__________cabaça
ibituruna

inficionado_____ambrósio

caraça

marcília__________isidoro

diversa de si — todo-o-avesso
revés que se serve
do zero
para informar o mundo

3

das cáries nenhuma
escreve mais
que o esquecimento

raros os fatos
que dão origem a uma
nova dor

_____nem o tendão
exposto da mãe, nem
o rapto, a morte — sim,

em outra língua, sobra
no inventário
de hostilidades

apesar dela o rosto
ao se desfazer
inaugura uma promessa

os mortos que foram
_____perdas
dobram a página para
viver nos livros

pela escarificação
das heranças
pouco se decifra, mas
uma vértebra
_____(o que basta)
prenuncia o corpo

PRAIA DO NÃO RETORNO

1

o cuidado de ulisses
com seu cão se explica a quem
antevê

um braço
a mais no escorpião: parentesco
que tece
a aflição da mulher

porque está ocupado, ulisses
tateia o pulso
de outro corpo “disseram

que a sombra de achiles
deteria o inimigo”

mas o bicho de
estimação já se habituara
ao zero
como destino

2

estendem a olisseo um
abismo
e em recompensa
os farelos

— há-de ser um mergulho,
insistem,
para que nenhuma
cifra o recupere

há-de ser fortuna esquecer
os músculos
e a estatura da palmeira

3

olisseo escreve o selo
do pai
o selo que ao pai dispersa

o mater selo, em
circuito fechado, nas
trevas

o zelo de olisseo contra
o selo
: à sua volta se acumulam

fendas uivos
sombras que na praia
ardem

olisseo se instrui
no pó
contra a incisão no carpo

— o mater selo do pai
recua
ante a fricção do mar

olisseo se lança, aporta
ao som
dos búzios

à deriva se dá, entre
signos
a que não se pode amarrar

(os signos
não plantados e que, no
entanto,

vingam em matas
livros_____mortos_____em rios
vogais)

oeco olisseo, de si
inteirado,
apruma-se salta-se elide-se

: para ser não se imprime,
olisseo,
o osso navio

4

olisseo carda a palavra
_____okoenda

sob a usura do assalto
_____se despe
_____se veste
em outra pele: cuendá
_____ulisses d’oro
arvorado argonauta

_____o eco

_____onde vais
_____where are you
_____où est-il

o devolve à planície
onde o leopardo não caça
por ser malhado

na linguagem quem captura
__________o
__________l
__________i
__________s
__________s
__________e
__________o
filho do se?

VOYAGES

de passagem por esta cidade — irmã das nossas pelo comércio, danos & cia — roeram-me o fígado as lisas pedras do cais.

tantos pés as desposaram que faltando um dentre os navios sentem-se viúvas. e rosnam e urdem vinganças. “o Especulador nos deve

COFFEE COTTON CLUB. o Boa Viagem GOLD TOBACCO COOL. o Flor do Brasil COTTON CACHAÇA BLOOD”. nós, que vemos as nossas,

vemos também esta cidade endividada em vítimas. qualquer especulador, por mais dura seja a viagem, colhe sua flor sua fortuna.

os caibros dos navios têm cãibras, as notas fiscais não. na seara de usura e cana pousa a constelação arfante o

p__________l__________a
_____u__________s__________r

o_____n o t u r n o_____d e_____n e t u n o

quem especula :___[dor]
quem recupera : ___[___]
[dor] ___tenta : ___quem
[___]___vinga : ___quem
ninguém coopera [d’or]

por esta cidade, irmão, as âncoras se cravam em nós, nos hinos que atiramos aos ouvidos. já não há passagem se do mar chegam notícias

de morte. e a morte mesma desnuda, a morte em festa, em sua mais cara face, a que não se paga e nos indaga: não danças?

Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Estes poemas foram extraídos do livro homeless publicado pela Mazza Edições, de Belo Horizonte, em 2010. A respeito da obra comentou Steven White, poeta, tradutor e professor de Literatura Hispanoamericana da St. Lawrence University (Canton, USA), 2012:

capa_homeless“Por ser integralmente ligado à diáspora africana, o trabalho abrangente de Edimilson Pereira precisa ser considerado em relação a autores de descendência africana através das Américas que publicam em línguas variadas e se inspiram em tradições orais, eventos históricos relacionados à escravidão, e o poder musical de spirituals, blues e jazz por sua energia. Nos Estados Unidos, tais escritores incluiriam, entre outros, Lucille Clifton, Nathaniel Mackey e, com certeza, Kevin Young, cuja persona poética em Ardency: A Chronicle of the Amistad Rebels ressuscita um coro de vozes que busca por liberdade através dos mares do tempo. Onde fica o lar das vítimas da diáspora e de seus descendentes? Como habitantes forçados à adaptação a novas terras e sempre prontos a transformarem línguas impostas com vestígios do que ficou para trás, o lar está na própria palavra. Os poemas de homeless de Edimilson de Almeida Pereira formam não apenas um refúgio literário, como também uma comunidade conectada a outras comunidades. Eles são cartografias, tão importantes quanto qualquer legislação, para navegar do passado para o futuro.”