PORTRAIT DE FAMILLE
1
pela escarificação no rosto
cada um se dá a ler
como um jornal diário
em verdade, os textos
nessa pocilga rascunham
um lugar em trânsito
uma sílaba traindo a outra
coloca no mesmo ringue
francisco e licutã
pelejam em nome do
_____ab al
_____to
_____em língua selada
esfolam-se francisco e licutã
para salvar o crânio
_____e seus dividendos
afiam a conversa no sangue
cada um de seu canto
não mede que está no outro
talvez, por isso,
se devorem
_____para ler-se desde dentro
2
sob a escarificação outra
_____miragem
esperando a mão
tocar-lhe as vértebras
outra que não a urina
_____e as fezes
nem a coleira do cão — outra
que sitiando os piolhos
escala os anônimos — outra
CAMPO GRANDE
brumado
guinda_____careca
sapucaí__________cabaça
ibituruna
inficionado_____ambrósio
caraça
marcília__________isidoro
diversa de si — todo-o-avesso
revés que se serve
do zero
para informar o mundo
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das cáries nenhuma
escreve mais
que o esquecimento
raros os fatos
que dão origem a uma
nova dor
_____nem o tendão
exposto da mãe, nem
o rapto, a morte — sim,
em outra língua, sobra
no inventário
de hostilidades
apesar dela o rosto
ao se desfazer
inaugura uma promessa
os mortos que foram
_____perdas
dobram a página para
viver nos livros
pela escarificação
das heranças
pouco se decifra, mas
uma vértebra
_____(o que basta)
prenuncia o corpo
PRAIA DO NÃO RETORNO
1
o cuidado de ulisses
com seu cão se explica a quem
antevê
um braço
a mais no escorpião: parentesco
que tece
a aflição da mulher
porque está ocupado, ulisses
tateia o pulso
de outro corpo “disseram
que a sombra de achiles
deteria o inimigo”
mas o bicho de
estimação já se habituara
ao zero
como destino
2
estendem a olisseo um
abismo
e em recompensa
os farelos
— há-de ser um mergulho,
insistem,
para que nenhuma
cifra o recupere
há-de ser fortuna esquecer
os músculos
e a estatura da palmeira
3
olisseo escreve o selo
do pai
o selo que ao pai dispersa
o mater selo, em
circuito fechado, nas
trevas
o zelo de olisseo contra
o selo
: à sua volta se acumulam
fendas uivos
sombras que na praia
ardem
olisseo se instrui
no pó
contra a incisão no carpo
— o mater selo do pai
recua
ante a fricção do mar
olisseo se lança, aporta
ao som
dos búzios
à deriva se dá, entre
signos
a que não se pode amarrar
(os signos
não plantados e que, no
entanto,
vingam em matas
livros_____mortos_____em rios
vogais)
oeco olisseo, de si
inteirado,
apruma-se salta-se elide-se
: para ser não se imprime,
olisseo,
o osso navio
4
olisseo carda a palavra
_____okoenda
sob a usura do assalto
_____se despe
_____se veste
em outra pele: cuendá
_____ulisses d’oro
arvorado argonauta
_____o eco
_____onde vais
_____where are you
_____où est-il
o devolve à planície
onde o leopardo não caça
por ser malhado
na linguagem quem captura
__________o
__________l
__________i
__________s
__________s
__________e
__________o
filho do se?
VOYAGES
de passagem por esta cidade — irmã das nossas pelo comércio, danos & cia — roeram-me o fígado as lisas pedras do cais.
tantos pés as desposaram que faltando um dentre os navios sentem-se viúvas. e rosnam e urdem vinganças. “o Especulador nos deve
COFFEE COTTON CLUB. o Boa Viagem GOLD TOBACCO COOL. o Flor do Brasil COTTON CACHAÇA BLOOD”. nós, que vemos as nossas,
vemos também esta cidade endividada em vítimas. qualquer especulador, por mais dura seja a viagem, colhe sua flor sua fortuna.
os caibros dos navios têm cãibras, as notas fiscais não. na seara de usura e cana pousa a constelação arfante o
p__________l__________a
_____u__________s__________r
o_____n o t u r n o_____d e_____n e t u n o
quem especula :___[dor]
quem recupera : ___[___]
[dor] ___tenta : ___quem
[___]___vinga : ___quem
ninguém coopera [d’or]
por esta cidade, irmão, as âncoras se cravam em nós, nos hinos que atiramos aos ouvidos. já não há passagem se do mar chegam notícias
de morte. e a morte mesma desnuda, a morte em festa, em sua mais cara face, a que não se paga e nos indaga: não danças?
Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Estes poemas foram extraídos do livro homeless publicado pela Mazza Edições, de Belo Horizonte, em 2010. A respeito da obra comentou Steven White, poeta, tradutor e professor de Literatura Hispanoamericana da St. Lawrence University (Canton, USA), 2012:
“Por ser integralmente ligado à diáspora africana, o trabalho abrangente de Edimilson Pereira precisa ser considerado em relação a autores de descendência africana através das Américas que publicam em línguas variadas e se inspiram em tradições orais, eventos históricos relacionados à escravidão, e o poder musical de spirituals, blues e jazz por sua energia. Nos Estados Unidos, tais escritores incluiriam, entre outros, Lucille Clifton, Nathaniel Mackey e, com certeza, Kevin Young, cuja persona poética em Ardency: A Chronicle of the Amistad Rebels ressuscita um coro de vozes que busca por liberdade através dos mares do tempo. Onde fica o lar das vítimas da diáspora e de seus descendentes? Como habitantes forçados à adaptação a novas terras e sempre prontos a transformarem línguas impostas com vestígios do que ficou para trás, o lar está na própria palavra. Os poemas de homeless de Edimilson de Almeida Pereira formam não apenas um refúgio literário, como também uma comunidade conectada a outras comunidades. Eles são cartografias, tão importantes quanto qualquer legislação, para navegar do passado para o futuro.”