A parte bicho da moça sobrevivente
Goiás, 04 de julho de 2019.
A moça é adulta agora. Tem quem, inflexível que é, a considere envelhecida. Ah, pobre do sujeito que pensa assim. Sabe pouco este, pensa reduzido, fechado no espaço curto de um torto tempo limitado pela visão isolada de um. Ela, caso estivesse aqui ditando o norte do relato desta sua histórica, talvez até desse razão a quem assim o diz. Fazia pouco de si mesma esta moça. Mas isto de ser ou de estar velho quase nenhuma diferença faz. Pode fazer uma diferença meramente subjetiva, já que ou a velhice é coisa de dentro, introjetada em cada um, ou é coisa apenas de quem, de fora, olha só por olhar e, embora pouco ou nada veja, julgue: está velho aquele. Em geral, ser velho na atualidade é situação vexatória, segundo os padrões predominantes. Bom, mas predominância é como a maioria sobre cuja definição o cronista foi duro ao indicar a respectiva e insuficiente inteligência. A moça da nossa história, porém, aceitou envelhecer. Nada disto, tampouco, importa aqui. A moça, que é agora adulta, desde sempre consumiu seu tempo, todo ele, é o que lhe parece porque tempo também é subjetivo, procurando a porta de saída. Não é bem assim, na verdade, esta moça não tinha uma noção clara sobre si, sobre sua história e sobre como ela e sua história se inseriam, bem ou mal, no mundo, no vasto mundo que circundava a si e àquilo que era tido por ela como sendo a sua vida. Bem, a porta de saída era um desafio. Sair nunca é fácil, principalmente quando você não tem certeza de que é a saída aquilo o que busca, que ela é o fim almejado ou, pior, que ela existe e que é preciso que por ela se saia para algum lugar onde estará, enfim, salvo. Pensa bem: você nasce num grupo familiar, num determinado lugar, cresce nele, vive segundo aqueles padrões. Então, não me diga que a porta de saída é visível a olhos desnudos. Ora, se fosse, sequer haveria procura, menos, ainda, a saída seria necessária, estaríamos delas e de tudo mais todos a salvo. É preciso, por isto, entender que a moça percorreu caminho. Foi menina. É adulta agora, velha como podem preferir os apressados. Antes engatinhou confusa sobre uma história que construiu para si mesma e nela se salvou e se perdeu. Esta tal moça é forte e ardilosa: sobre a história de base, que deixou submersa em seu inconsciente, construiu uma outra ficta, assentada sobre falsos cenários verdes, com céus azuis de primavera, igualmente irreais. Sobre tal virtualidade perfeita se assentou como pessoa feliz. Só que a base falsa tem sempre frestas incontidas por via das quais a verdade escapa, infalivelmente. A moça, antes menina, desde então, cresceu sentindo-se um blefe. Inadequada. De fato, era ela um blefe, vez que firmava-se sobre aquelas bases falsas e inseguras que, sabia, eram produto de suas idealizações de sobrevivência. A menina da moça, precedendo a agora adulta, creu em seu mundo virtual de felicidade, idealizado como campo de paz. Num determinado momento, ousada, fez tudo ruir. Ela fez ruir. Estava cansada de não saber bem quem era. E aí, ela desmistificou sua felicidade falsa, sua segura insegurança. Pulou de “de ponta” no poço fundo que era ela. Teve coragem. Submergiu. Emergiu faz pouco à superfície. Está agora tomando fôlego, quieta ao seu próprio lado. Tem a si como companheira.
Julianne Veiga é de Goiás, uma antiga e histórica cidade do interior do estado de Goiás. Casada, três filhos, três netas.