
1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019)?
O conjunto dos poemas que compõe a antologia Inquietações em tempos de insônia foi redigido, em quase sua totalidade, entre o período eleitoral e os primeiros meses do governo atual. Não que eu pensasse na altura elaborar um livro que dialogasse com o momento político pelo qual atravessávamos. Meu ponto de partida era outro. Pelo ato da escrita, buscava, antes, entender o “trauma discursivo” a que éramos confrontados, e mais particularmente os que, como eu, trabalham com a literatura. Nunca o Brasil vivera um momento de tanta dor. Nunca o Brasil conhecera tamanha violência veiculada por seus representantes políticos, pela mídia e pelas redes sociais. Nunca, ao longo de toda a nossa história, a palavra fora tão atacada no Brasil. Durante este período (e ainda hoje), assistimos, como evoco no poema “Menino-pássaro”, à morte anônima e solitária da palavra “abandonada, no meio-fio” das ruas. Ora, não há nada mais aterrorizador para quem com a palavra trabalha e que em sua capacidade de fazer emergir o cuidado para com o outro acredita, do que ver a palavra, assim, pisoteada em praça pública. Vivi este momento de maneira traumática sentindo corporalmente os seus efeitos nefastos. Os primeiros textos da coletânea decorrem deste sentimento e de minha impotência diante dessa tragédia. Eles evocam este corpo social à beira do abismo presenciando a vertigem das perdas e da crença no poder da palavra. Não sei se dos abismos consegui (e conseguimos) retornar. De todo modo, fica aqui o registro desse grito tão necessário.
2. Como costuma ser seu processo de criação? E como foi esse processo com Inquietações em tempos de insônia?
Antes de me dedicar à literatura trabalhei durante muitos anos no Brasil como músico. Estudei piano e, posteriormente, ingressei a universidade no curso de Composição e Regência. Não que a música exija mais do que outras práticas artísticas ou científicas, mas o rigor metodológico que ela impõe deixou marcas profundas em minha formação e em minha atuação de docente, de pesquisador e de escritor. Prezo pelo rigor, aprecio a organização sistemática, cumpro horários pré-definidos, componho diariamente listas de tarefas redigindo de maneira metódica meus cursos, artigos acadêmicos e poemas. Meu exercício de escrita se aproxima, em grande parte, da prática do músico e, nomeadamente, do improviso jazzístico cuja arte reside justamente neste tênue equilíbrio entre rigor e liberdade: o rigor do estudo para absorver o material musical necessário ao improviso (citações de outras músicas, figuras rítmicas, fraseado relacionado do gênero em questão, etc.) e a liberdade da escolha no momento da performance em que se colocam em prática as conexões entre os elementos estudados e aquilo que nós executantes desejamos como resultado final. Mais perceptível em minha primeira antologia (Agora vai ser assim, Editora Nós, 2018) cujos poemas apontam em seus diálogos “inter” e “transtextuais” para um anarquivamento litero-cultural (Márcio Seligmann), em Inquietações em tempos de insônia tal postura se manifesta pela tensão inerente ao improviso (que não se restringe à sua tecnicidade) e que o estado de vigília em que nascem tais textos vem corroborar. Como afirma Márcia Tiburi ao citar a escritora Margueritte Yourcenar na apresentação da antologia: o homem que não dorme (e que não deixam dormir) se recusa ao fluxo das coisas. Há tempos que eu recuso os fluxos das coisas. Há tempos que eu não durmo e que vivo, tragicamente, a atualidade brasileira, nomeadamente em meus improvisos poemáticos.
3. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?
Trata-se de uma pergunta quase impossível a ser respondida, sobretudo se levarmos em conta as motivações pessoais que levam à escrita. No que me diz respeito, ela decorre de uma urgência transformada em grito por justamente ainda não se saber palavra. Gosto de pensar minha escrita como este clamor capaz de expressar uma dor diante da impossibilidade de compreender as guerras, o racismo, a homofobia; diante da impossibilidade de conceber a tragédia dos refugiados. Neste sentido, coloca-se aqui menos a questão das motivações que me levaram ao exercício ficcional (que sempre é um exercício falho) do que o desejo de as fazer conhecer junto a um público leitor. Este talvez seja o grande desafio do processo de escrita: escrever para assumir publicamente suas falhas fazendo emergir, pela leitura, a experiência da hospitalidade, aquela que muitas vezes somos incapazes de praticar no cotidiano. Que conselho, neste sentido, dar aos jovens escritores? Que nunca percam de vista o que define, em minha opinião, a própria literatura: a capacidade de acolher e de reconhecer o outro. Ou como evoco no poema “Estar-em-comum” (Agora vai ser assim): a hospitalidade que sempre começa pela hospitalidade da língua de “nomear o outro que desconhecemos”, de “acolher em nossa língua o outro que não conhecemos”; a hospitalidade que nada espera, exceto o próprio “gesto da hospitalidade”: “um estar-em-comum, um respeitar-em-comum, um gesto, apenas”.
4. Como professor da Universidade Sorbonne, em Paris, e um dos principais divulgadores da literatura brasileira no exterior, que avaliação você faz do modo como os europeus enxergam nossa literatura e o Brasil, ontem e, principalmente, hoje, sob o impacto de um governo de extrema direita que ataca as universidades, a ciência e a cultura do país?
Para que leitores possam conhecer a nossa literatura fora do país é necessário que ela seja traduzida. Este foi um dos grandes desafios da política de soft power implementada pelo governo brasileiro ao longo dos anos 1990 e 2000, quando se deu o início do processo de internacionalização de nossos bens culturais, nomeadamente de nossa literatura. Criaram-se bolsas de tradução, o governo passou a apoiar a presença de escritores em eventos internacionais, incrementou-se a visibilidade de nossa literatura por meio da participação do país nas grandes feiras internacionais. Um grande quiproquó instala-se, no entanto, desde o início deste processo. Em minha opinião, ele diz respeito à incapacidade do país em optar entre uma verdadeira política em matéria de diplomacia cultural (fortalecendo a sua marca Nação pelo viés da cultura) e entre uma política de exportação de seus bens culturais permanecendo assim atrelado às leis do mercado e às forças do campo literário e de seus agentes que, como sabemos, compartilham interesses em comum mas que não dispõem dos mesmos recursos e competências (Pierre Bourdieu). O que dizer hoje da (não) presença de nossa literatura na cena mundial? Aliás como defender a literatura de um país confrontado a um poder totalitário? De um país que não defende os seus cidadãos? De um país que não respeita o meio ambiente? De um país que desmantela a sua educação ou que através de seus órgãos oficiais difama os seus atores culturais, como no caso da recente nota da Secom atacando a cineasta Petra Costa? O Brasil com o que sonhávamos já não existe, nem dentro e nem fora do Brasil.
5. Como surgiu a ideia da Printemps Littéraire Brésilien? Conta-nos um pouco sobre este projeto?
O projeto Printemps Littéraire Brésilien nasce dentro da sala de aula, nomeadamente em minhas aulas de literatura brasileira na Universidade da Sorbonne onde leciono há quase 20 anos. Ele tinha (e ainda tem) por objetivo fazer com que meus estudantes descobrissem a nova literatura brasileira pouco lida aqui no exterior. Foi em 2005, durante as comemorações do ano do Brasil na França, que comecei a receber escritoras e escritores brasileiros em minhas aulas. Diante da boa recepção por parte de meus estudantes decidi criar em 2013 a primeira semana Brasil na Sorbonne que, em 2014, se transformou na Printemps Littéraire Brésilien. Desde sua criação mais de 200 autores já participaram do evento que, em 2016, ganhou uma dimensão internacional com apresentações realizadas em países europeus e em diversas cidades nos Estados Unidos. As atividades da 7ª edição do festival conservam ainda seu caráter colaborativo, participativo e itinerante. Elas começam agora no mês de fevereiro na Universidade de Indiana (Bloomington) e prosseguirá por cinco países europeus (França, Portugal, Bélgica, Itália e Alemanha). Retornaremos aos Estados Unidos no mês de abril com atividades programadas em 12 universidades norte-americanas. Para além da participação de mais de 70 convidados (autores, editores, jornalistas, ilustradores, etc.), contaremos este ano com a parceria de diversos atores do mundo do livro no Brasil e no exterior (revistas literárias, editoras, livrarias, blogs, etc.). Felicito-me da parceria estabelecida com a Revista Gueto que, ao longo do ano, acolherá textos ficcionais e ensaísticos redigidos pelos participantes da Printemps Littéraire Brésilien em torno do tema: “Brasil : (im)possíveis diálogos”. Este será um momento profícuo para debater, entre outros, os possíveis e impossíveis caminhos que se abrem à nossa cultura e à nossa produção literária. A nossa maneira de contribuirmos, criticamente, a uma possível política de diplomacia cultural, se esta ainda for possível no contexto atual.

Leonardo Tonus é professor Livre Docente em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 e da exposição Oswald de Andrade: passeur anthropophage no Centre Georges Pompidou (França, 2016). É o idealizador e organizador do festival Printemps Littéraire Brésilien. Publicou diversos artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou a publicação, entre outros, de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olimpio, 2008) e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan — Da Terra de Migração Para a Terra Natal (Revista Pessoa, Abu Dhabi Departement of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Vários de seus poemas foram publicados em antologias e revistas nacionais e internacionais. É autor de duas coletâneas de poesia: Agora vai ser assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).
Três poemas do livro Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019), de Leonardo Tonus, saíram na revista gueto no dia 23 de janeiro, você pode ler aqui: [link]