Rómulo e Remo, duas crianças na teta de uma loba. Os rostos em bronze, em mármore, em cobre. Há quem diga que se trata de Krip e Ton, e que Roma, com seus frescos, o seu papado, o seu pó amarelo sobre a cidade, seriam o princípio de uma encenação tosca sobre a história do mundo. Fellini teria muito a dizer, mas o apocalipse* não era nos seus filmes, mais que o encontro de um jovem menino com um mulherão size 42. Talvez o sexo seja sempre assim, um intervalo entre o lógico e o absurdo, entre o natural e o oculto.
Talvez como os dois homens tocando os dedos sobre a capela sistina, criando Adão parece, ocultando e mostrando um cérebro como possível origem da vida, não passe de uma encenação do Big Bang de Krypton. Dois irmãos tocam os dedos e nasce o mundo. Talvez Kryp e Ton não fossem nem irmãos, mas amantes, e o sexo, afinal, só contorne a questão da origem da vida, como uma formiga africana que caminha sobre a banda de Möebius, sem nunca achar início ou fim de nada.
O importante de reter, desta encenação romanesca, é que há origens e origens, e o paradigma científico das mesmas descansa sobre os ombros do Apocalipse, esse filho de Bertron** e da ciência, a mistura do adn de bebês escravos com animais pré-históricos. Uma coisa assim entre humanos vitimizados num shaker com dinossauros. Uma imagem a mais, um passo além do Jurassic Park, o filme, os filmes. A mesma ideia, no entanto, a vaidade humana em primeiro plano, e depois dois ou três tiozinhos procurando criar um Supersoldado. Algo como um elemento suspenso entre a vaidade e a ganância. Fantasias. Sexuais, como em Freud. De poder, como em Adler. De evolução, como em Darwin. Referências bibliográficas em rodapé. Em todos os casos: o Apocalipse. O fim dos Voch, de Bertron, dos científicos do Jurrassic Park, sobretudo aquele gordinho que faz de “Newwwwman” em Seinfeld.
É claro que enquanto o mundo gira e o mito desliza, algumas luzes se acendem no horizonte: o cinema, a literatura, a música, e a própria luz. Uma luz que se pode apresentar como oculta, lançando a inevitável questão: haverá outra luz que não aquela que brota no intervalo entre a fantasia e a procura, o dentro e o fora, a insistência no vazio?
Analisemos o caso de William Ramsey. Isso mesmo, Ramsey. No dia 30 de maio de 1898, em Londres, Ramsey, em conjunto com Morris Travers, um homem que podemos facilmente imaginar um híbrido entre Alfred, o mordomo de Batman, e Watson, aquele do Elementar, meu caro Watson, descobriram algo. Primeiro o árgon, quase como o filme Argo, mas sem N. Quase como Fargo, o filme, a série, mas não quero ir demasiado longe nas minhas especulações, se bem que, nenhum elemento da vida, ou da tabela periódica é sem relação com o anterior, isso estes homens deixaram provado. Descoberto o árgon, ficaram como Fellini olhando para a dona descalça à beira-mar, a suspeita de algo a mais ali, aquele plus onde o desejo se reactiva, se renova, nunca cessa de não se realizar. Decidiram liquefazer o ar, destilando o ar líquido e separando-o em frações, depois exploraram as mais leves procurando um elemento gasoso. Como Bertron descobriu ao criar o Apocalipse, o erro é parte do mistério da vida, parte desse salto em suspenso. Aqueceram demasiado o ar, a maior parte da amostra evaporou. Restaram 100ml. Insistiram. Eliminaram o oxigénio e o nitrogênio usando cobre e magnésio aquecido a alta voltagem dentro de um tubo vermelho. Ali estava o árgon ainda, mas também duas novas linhas: uma amarela e outra verde, nunca antes observadas. Mais tarde, devido ao sol que se faz sentir na região desértica de Los Angeles, e ao consequente uso de lentes polarizadas, seriam adulteradas para vermelho e azul e usadas em fatos de lycra com chumaços. Para mais, veja-se notas em rodapé.
Ramsey e Travers calcularam o calor específico e a pressão constante, o valor foi de 1,66. Era um gás. Um novo gás. Um gás até ali, oculto.
Impunha-se a nomeação, e ao tratar-se do oculto, a imprudência era pecado, estávamos apenas em 1898. A mulher de Ramsey sugeriu então: Um nome em grego, grego ninguém entende. Estava o gás apadrinhado: Krypton. De número atómico 36, três vezes mais denso que o ar, o intervalo entre o dedo de Kryp e Ton.
Foi com Dirty Dancing e Coktail, os cabelos permanentados e as franjas lisas, as camisas havaianas, e o mundo rendido aos chapéusinhos chineses nas bebidas alcoólicas que Krypton brilhou: As luzes neón, as máquinas fotográficas de alta velocidade, os flashes. Um mundo cruel para epiléticos, mas romântico à sua maneira, deliciava-se com gente que dançava enquanto a luz piscava, algo do tempo entrecortado, suspenso entre um gesto e o outro parecia prometer a captura, o isolamento do instante em que o desejo se apresenta e desaparece, em que o tempo fica e o tempo passa, em que saltamos de um elemento da tabela periódica para o seguinte. Tudo, pela excitação do Kripton.
Cabe registar que nem só de vaidade vive o homem, os frescos apagados na construção do metro de Roma, bem o recordam. O homem move-se no instante entre a lentidão e a procura da rapidez, entre o eterno e o efémero. Manter a vida. E por isso encontramos Krypton também nos laboratórios, nos hospitais, nas cirurgias médicas, que abrem as entranhas sem medo de deixar escapar as 21 gramas, elemento ainda não inscrito na tabela, para concertar os fusíveis de uma raça híbrida entre escravos e animais pré-históricos, reconectando cabos, e fios, e ataduras, ignorando que o Apocalipse aconteceu no passado e viaja à velocidade da luz.
Charles Wibstear , Chemistry Today, dezembro 2019——————————————————————————————
Podem chamar-lhe Verdade, e apontava para a gata, obesa e cinzenta que dormia sobre o tampo da secretária. Verdade tinha o nariz raspado e a cauda demasiado longa. Quando ouvia o seu nome, levantava o focinho e estendia a pata direita, juramento ou aceno. Cresciam-lhe, como a Charles Wibstear pêlos brancos, no bigode, nas orelhas, na barriga contornando a zona genital.
Charles notara isso há mais de vinte anos, um pêlo branco aqui, outro ali. Não tinha com quem dividir essas questões, foi assim que começou o seu sistema de anotação. No canto inferior direito da página do livro que estava a trabalhar, logo depois das notas de rodapé, acrescentava em letra miudinha: Acontecimento, (Quantidade), data (dia, mês, ano). Por exemplo: Ruga persistente no canto da boca, 1, 23/07/1998; Hoje foi o funeral de John, triste infinito, 15/02/2001; Hoje Stephen Hawkins apareceu no Big Bang Theory, episódio 108, 05/04/2012. Coisas que lhe pareciam relevantes.
Podemos assim, para efeitos da escrita deste livro, reconstruir com base na sua biblioteca, como foi o caminho do brilhante químico, professor catedrático da Universidade de Columbia, três vezes nomeado a Nobel, até ao artigo de Dezembro de 2019, na Chemistry Today.
O posterior suicídio de Charles em pouco nos deve impressionar, defendera sempre que para homens e Verdades, o melhor era escolher a retirada, ser posto a dormir antes de que por a ou b o paradigma que sustinha a existência particular fosse quebrado.
Apesar de o ter desacreditado como científico, é pela infeliz publicação, e não pelas três nomeações, que ficou conhecido do público estado unidense, e quem sabe, mundial. Stan Lee Inc., que o próprio é falecido, declarou na primeira terça-feira do ano 2020, que tinha interesse em adquirir os direitos de autor da vida de Charles. Também por esta biografia, escrita por Ghost Writer, embora todos saibam que o autor sou eu, o seu sobrinho, acedendo ao pedido que o próprio me fez no natal de 2018, a editora Penguin declarou seu interesse. Investigando a biblioteca do tio, pude localizar o motivo de seu pedido:” Estudos sobre a tabela periódica”, página 30, nota de rodapé: Perdi meu último pentelho negro, 0, 25/12/18.
Charles negava-se a quantificar o tempo, mas para efeitos desta narração direi que passou pouco entre a saída do artigo e o seu último suspiro. Foi Luísa Bettencourt de Aragão, a empregada, que o encontrou sem vida, e para mim a sua primeira chamada. O escritório estava quente ainda, e Verdade dormia sobre o seminário de Lacan, volume X, A Angústia. Pelas suas patas percebíamos que o livro era branco, mas o seu pêlo tapava a imagem central: várias formigas gordas passeando sobre uma fita de Möebius. Perto do candeeiro verde o compilado da editora Honey-trap “Krypton, o planeta e o mito, muito além de Superman”, a Bíblia com as suas folhas de papel de arroz, e uma edição antiga de “O poder do mito” de Joseph Campell. No centro uma lupa, um caderno de folhas impressas, scans aparentemente, do artigo original de Ramsey e Travers: “Krypton, o gás oculto”. Um post-it amarelo sobre a primeira folha com a letra meu tio: Nego-me a usar a forma portuguesa de Crípton ou a brasileira, pior ainda, de Criptônio.
Ao que tudo indica as notas sobre Fellini e demais referências cinematográficas foram feitas de memória, uma quebra no seu estilo científico rigoroso, que demonstra um amor oculto, kryptónico, pela sétima arte.
De Seinfeld o único registo encontrado foi um dvd da temporada 5 esquecido ao lado do tomilho, na janela da cozinha. Não saberíamos precisar como e quando ali chegou. O tomilho estava seco.
Michael Tissue da Chemistry today, declarou ainda, na semana do suicídio do tio que se perdera “Um grande homem, capaz de tecer fios profundos entre a humanidade e a ciência”.
Deste grande homem fica ainda a cadeira gasta, sóbria como o mogno, mas danificada por uma unhada de Verdade.
John Wibstear, O grande homem e a pergunta (em processo)
* Apocalipse, significa Descoberta.** Origem pré-histórica de Krypton, fonte: Wikipedia.
Raquel Laranjeira Pais nasceu em Lisboa. É licenciada em Psicologia e mestre em Psicanálise e Filosofia da Cultura pela Universidade Complutense de Madri. Dá continuidade à sua formação em São Paulo onde frequenta o centro literário Escrevedeira e publica contos em revistas literárias. Em novembro de 2019 publicou o seu primeiro livro de contos Trinta e Três de Agosto na coleção Arranhacéu da editora Perspectiva. Atualmente vive e trabalha na sua cidade natal.