para cima
I
só que às vezes tudo
que vai
não volta
para cima
ao atingir uma certa altura
a velocidade do projétil cai
a zero
ele despenca
como se fosse uma pedra
pequena mas a resistência
do ar
não deixa a bala passar
de 270 km/h
no fim
do trajeto
para perfurar
o tecido
do corpo
ela precisa atingir pelo menos 350 km/h
a situação complica quando o tiro é disparado
em ângulos menores o projétil traça
um arco no céu sem chegar a
parar
boa parte da velocidade inicial
é mantida para piorar
como a bala sai
do cano girando ela fura
o ar como se fosse uma broca
acaba caindo com a ponta
virada para baixo
quase sem perder
o pique
o drama
é que uma bala atirada
de um 38 parte a 1.042 km/h
o projétil de um fuzil AR-15 é ainda mais veloz
atinge 3.500 km/h mesmo que elas percam
metade da velocidade
no trajeto o tiro dado para cima
ainda pode ser letal
II
hoje me vi dizendo
de dentro do carro não aponta
para a polícia
enquanto eu passava pela mangueira
lembrei da minha avó dizendo
não aponta
para as estrelas
porque dá verruga nos dedos
entre as estrelas
e as minhas verrugas
caem todas as balas perdidas
como quase tudo que aponta
para cima
todos os dias
só não cai
o que aponta nas mãos
da polícia
linhagem
meu pai foi assassinado
o assassino do meu pai foi assassinado
a mãe do assassino do meu pai
teve o filho assassinado
minha avó teve o filho assassinado
dois primos meus tiveram o pai assassinado
dois primos meus foram assassinados
um prima minha teve o pai assassinado
três primas minhas tiveram o irmão assassinado
uma tia minha teve o filho assassinado
uma prima minha teve o filho assassinado
dois primos meus tiveram o irmão assassinado
dois primos meus tiveram o sobrinho assassinado
minha mãe teve dois sobrinhos assassinados
minha avó teve dois netos assassinados
meus primos tiveram os primos
da prima deles assassinados
marinete teve uma filha assassinada
a outra filha de marinete teve uma irmã assassinada
a neta de marinete teve uma mãe assassinada
maria rita teve o filho assassinado
a outra filha de maria
teve o irmão assassinado
o neto de maria carlos augusto
teve o pai assassinado
alexandre teve a companheira assassinada
thais teve a mãe assassinada
uéverton teve a mãe assassinada
pâmela teve a mãe assassinada
pablo teve a mãe assassinada
além dos quatro filhos
há também quatro sobrinhos
adotados ângelo samuel alexandre
e caio tiveram a tia ou a mãe assassinada
vanessa teve a filha assassinada
adegilson teve a filha assassinada
airton teve a neta assassinada
katia teve a filha assassinada
renata teve o filho assassinado
mônica teve o filho assassinado
bruna teve o filho assassinado
josé teve o filho assassinado
a filha de bruna e de josé
teve o irmão assassinado
as duas avós da filha de bruna e de josé
tiveram o neto assassinado
elisa teve o avô assassinado
isabela teve o namorado assassinado
isabela teve a sogra assassinada
isabela teve o sogro assassinado
camilla teve o irmão assassinado
camilla teve a mãe assassinada
camilla teve o pai assassinado
ágatha teve o companheiro assassinado
o filho de ágatha teve o pai assassinado
dulcineia teve o companheiro assassinado
o filho de dulcineia teve o pai assassinado
oito meses depois dulcineia e seu filho
também foram assassinados
e os pais já mortos de dulcineia
tiveram a filha assassinada
e o neto assassinado
aikyry teve o pai assassinado
valdelice teve o pai assassinado
ládio teve o pai assassinado
genilton teve o pai assassinado
marcos teve o pai assassinado
rosângela teve a filha assassinada
sônia teve o filho assassinado
gabe teve a irmã assassinada
salacione teve a filha assassinada
zilda teve a filha assassinada
jackson teve a filha assassinada
edna teve a filha assassinada
marli teve a filha assassinada
luiz antônio teve a filha assassinada
hildegard teve o irmão assassinado
zuleika teve o filho assassinado
cinco anos depois zuleika foi assassinada
hildegard teve a mãe assassinada
dona santinha teve o filho assassinado
lola teve a filha assassinada
álvaro teve a filha assassinada
gabriel teve a filha assassinada
gabriela teve a amiga assassinada
pérola teve o amigo assassinado
patrícia teve o amigo assassinado
maycon teve o irmão assassinado
a avó de maycon teve o outro neto assassinado
elizabete teve o companheiro assassinado
onze irmãos tiveram o irmão assassinado
uma empregada doméstica teve o filho assassinado
um pescador teve o filho assassinado
seis filhos tiveram o pai assassinado
anderson teve o pai assassinado
milena teve o pai assassinado
mais quatro irmãos tiveram o pai assassinado
michele teve o tio assassinado
luana teve a irmã assassinada
jorge teve a filha assassinada
jessylen teve a cunhada assassinada
jefferson teve a namorada assassinada
mônica teve a companheira assassinada
ana teve o companheiro assassinado
a amiga do cláudio
teve o companheiro assassinado
a amiga do amigo do meu companheiro
teve o companheiro assassinado
a companheira do amigo de laércio
teve o companheiro assassinado
o filho do amigo de laércio
teve o pai assassinado
laércio teve o amigo assassinado
patrícia teve a amiga assassinada
heloisa teve a amiga assassinada
a amiga de heloisa teve a amiga
da amiga
assassinada
a amiga da namorada
do meu primo assassinado
teve o namorado da amiga
assassinado
o amigo do meu primo
teve o sobrinho do amigo
assassinado
a tatiana teve o tio assassinado
a cristiana teve o tio da companheira
assassinado
a minha amiga teve o tio assassinado
dizer a minha amiga teve o tio assassinado
é o mesmo que dizer eu tenho uma amiga
que teve o tio assassinado
é o mesmo que dizer eu tive
o tio da minha amiga
assassinado
é o mesmo que dizer eu também
pertenço à linhagem
dos assassinados
eu também
sou afetada pelo assassinato
eu também
carrego o peso do verbo ter
um assassinado ou uma assassinada
marcado ou marcada
no histórico da minha vida
o histórico da minha vida
também é um obituário
o histórico da minha vida
é marcado por nomes
mais próximos ou mais distantes
apagados da vida
nesse histórico
a amiga da anielle
teve a irmã da amiga
filha de marinete
assassinada
eu não conheço a anielle
mas um dia estive lado a lado
com sua irmã
eu não conheço a anielle
mas pessoas que eu conheço
conheceram sua irmã
eu não conheço a anielle
mas muitas pessoas a conhecem
e para sempre vão conhecer sua irmã
eu me chamo danielle
eu pertenço a uma linhagem
de assassinados
nós todos
estamos ligados
por uma linhagem de assassinados
como você eu pertenço
a uma linhagem de assassinados
como a maioria das pessoas
que sabem e como a maioria das pessoas
que ainda não sabem
da pessoa assassinada mais próxima
ou mais distante
a quem ela está vinculada
como essas pessoas
eu não fui
ou ainda não fui
assassinada
como todos esses nomes
que carregamos sem saber
como todos esses nomes
que trazem outros nomes
que todos nós temos
a responsabilidade
de dizer
legado
o meu pai dizia
que me amava
mas era escroto
com mulheres
na rua e em casa
o meu avô dizia
que me amava
mas era escroto
com mulheres
na rua e em casa
um dia vi meu avô
fechando o punho
para bater na minha avó
ele só não o fez
porque eu estava presente
um dia vi meu avô
atravessando a rua
aos berros xingando
saltando em direção
à minha mãe
para bater nela
ele só não o fez
porque os vizinhos o impediram
nesse momento
eu estava presente
e nem a minha presença
foi suficiente
nesse momento eu acabei
fazendo xixi nas calças
de medo e de nervoso
nesse momento minha mãe
saiu correndo
comigo no colo
para dentro de casa
anos depois eu soube
o meu avô
quis me tirar
da minha mãe
após a morte do meu pai
um dia meu pai
ameaçou minha mãe
meu pai andava armado
a serviço do estado
um dia ele disse que
se algum homem na rua
olhasse para a minha mãe
ele ia matar ela e o homem
mas meu pai me amava muito
e o pai dele também
hoje
só hoje
eu faço jus ao legado
que meu pai e meu avô me deixaram
nem hoje nem nunca mais
vou me sentir culpada
por não lamentar
a morte de ambos
Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. É formada em História (UFF) e faz doutorado em Teoria Literária (UFRJ). Atua como poeta e crítica, publicando poemas e ensaios em diversos periódicos e revistas eletrônicas. Lançou o livro de poemas Quando o céu cair, pela Editora 7Letras, em 2018.