um homem de bruços
o tempo já não há.
há um homem na cama.
coladas ao lençol estão suas mãos.
a pulsação arterial é de 65 bpm.
a temperatura estável.
os músculos intercostais se contraem do homem
cujas costas arquejam
nu.
concentro-me em sua respiração.
no diafragma,
na boca que relaxa o gás carbônico,
o oxigênio de um mundo
que o abandonou,
ofegante.
deito-me ao lado do homem,
do rosto virado ao meu.
adivinho suas perdas,
profundas perdas no corte do pescoço
da mão suspensa
que acaricia seu corpo:
_____o corpo de um homem de bruços que expira
_____em seus lençóis de alfazema.
menino-pássaro
uma palavra morreu na calçada solitária.
uma palavra abandonada, no meio-fio,
que ninguém notara.
palavra cuja morte
nenhum jornal notificara,
tampouco eu, ao sair de casa,
e pisar o corpo inerte ainda morno da palavra
com a qual, há anos, no exílio, já não sonhava.
viver no exílio é viver o exílio das palavras
na possibilidade de todas, que é nenhuma.
acordar no exílio é acordar com as palavras
se sobrepondo uma a uma em nossas retinas,
girando a mistura de uma ilusão contínua.
à força de me aventurar pelas palavras
perdi seus rastros,
apaguei os vestígios de seus sonhos
que hoje sonho no eco oco
de um mundo mudo
sem ruídos.
há anos deixei de cantar a palavra
que às janelas emudeceu.
da copa das árvores silenciou a palavra
os órfãos epiléticos de meu bairro
que, pelas ruas frias e úmidas,
deambulam à sua procura.
repito: a palavra hoje morreu,
anônima,
às seis horas da manhã.
ela morreu sem pré-aviso,
devedora de sonhos aos pássaros
que de seus ninhos continuam a cair.
morreu a palavra alçando sonhos até as mãos
em sonho de um menino,
de um menino-pássaro,
sem palavras.
fui. foste.
porque doravante serás o des-
reencontro:
_____tu,
_____meu país,
_____que um dia foste.
| poemas do livro Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019). |
Leonardo Tonus é professor Livre Docente em literatura brasileira no Departamento de Estudos Lusófonos na Sorbonne Université (França). Membro do Conselho Editorial e do Comitê de Redação de diversas revistas internacionais, atua nas áreas de literatura brasileira contemporânea, teoria literária e literatura comparada com pesquisa sobre imigração. Em 2014 foi condecorado pelo Ministério de Educação francês Chevalier das Palmas Acadêmicas e, em 2015, Chevalier das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura francês. Foi Curador do Salon du Livre de Paris de 2015 que teve o Brasil como país homenageado e, em 2016, da exposição Oswald de Andrade: passeur anthropophage no Centre Georges Pompidou (França). É o idealizador e organizador desde 2014 do festival literário internacional Printemps Littéraire Brésilien. Participou da Delegação Oficial brasileira no Salão do Livro de Göteburg (Suécia) em 2014 e 2016 e atuou como moderador de diversos eventos literários internacionais (Flip, 2017; Salon du Livre de Paris, entre 2012 e 2018, Salão do Livro de Göteburg, 2014 e 2016). Publicou artigos acadêmicos sobre autores brasileiros contemporâneos e coordenou a publicação, entre outros, dos ensaios inéditos do escritor Samuel Rawet (Samuel Rawet: ensaios reunidos, 2008), do número 41 da Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, da edição especial da Revista Ibéric@l, em torno da nova cena literária no Brasil e das antologias La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015), Olhar Paris (Editora Nós, 2016), Escrever Berlim (Editora Nós, 2017) e Min al mahjar ila al watan (Da Terra de Migração Para a Terra Natal, Revista Pessoa/Editora Mombak; Abu Dhabi Departement of Culture and Tourism/Kalima, 2019). Em 2018 lançou sua primeira coletânea de poesias intitulada Agora vai ser assim (Editora Nós, 2018) e vários de seus poemas já tiveram publicação em antologias e revistas nacionais (A resistência dos vaga-lumes, 2019; Em tempos de pós-democracia, 2019; O que resta das coisas, 2018 — finalista do Prêmio Ages 2019) e internacionais (Aosnovoiorquinos, New York, 2019).