O ônibus que seguia para o sertão deu uma parada e ali subiu um senhor com aparência sexagenária que vendia pastéis e outros salgados. Na caixa plástica dos seus lanches exibia um grande adesivo com a frase “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Ele desfilou pelo corredor anunciando seus produtos e, nas cadeiras do fundo, encontrou dois homens seus conhecidos. Comentou com eles algum episódio de crime, e concluiu:
— Conheci um cidadão que foi preso e na cadeia havia um ferro quente, desses de marcar gado, e lhe gravaram na traseira uma letra. Devia ser assim até hoje. Deviam pegar cada preso e arrancar as unhas todos os dias, durante uma semana, de alicate.
Ele voltou e me ofereceu as peças de trigo que eu já havia recusado.
— O senhor é cristão? Não foi isso que Jesus sofreu?
Não precisei colocar mais detalhes, o vendedor já sabia que eu estava entrando na sua conversa sobre tortura. Sem aparentar qualquer surpresa argumentou que “no tempo de Jesus” já havia castigos.
— Sei disso, houve o caso de Maria Madalena, e Cristo se opôs àquela barbaridade.
— No velho testamento se castigava assim também!, afirmou o ambulante, já se adiantando para descer no próximo ponto, sem ouvir minha comparação entre os dois livros da Bíblia.
Uma mulher jovem do outro lado do corredor olhou para mim parecendo concordar com o que eu dizia. Lá atrás os dois amigos do pasteleiro mergulharam numa conversa cheia de risadas que eu não conseguia ouvir direito, mas que tinha expressões de contentamento com a brutalidade. Senti que eles precisavam rir enquanto faziam comentários carniceiros, e que era melhor não escutá-los. Prossegui a viagem crendo que nenhum daqueles valentes assumiria a tarefa de arrancar unhas, que delegariam a função a um miserável mal assalariado, como os governantes fazem, que contratariam um carrasco faminto para a manutenção da sua grande moral e do seu grande Deus.
No retorno a Salvador, num carro de frete, o motorista jovial falava também de temas de segurança pública. Eu vinha calado ao seu lado, a conversa dele era com um idoso que viajava atrás. O velho, que balbuciava contra os direitos humanos, mudou o assunto para a economia e disse que “era grande o rombo na Previdência”. O homem ao volante concordava mas desviou, e falou que o presidente da República fala muita bobagem, é fraco e não se comporta como um governante. Também condenou a “trambicagem” que fizeram para prender o Lula. O velho, desistindo, abriu uma Bíblia e começou a gaguejar na leitura de algum trecho sem começo nem fim.
Vontade de chegar em casa. Como no dia em que saí da Festa Literária de Cachoeira (Flica), em 2017, e peguei uma van de frete e, na viagem, fui submetido a um ritual cheio de “aleluias”. A produção da Flica tinha me oferecido transporte, mas eu me atrasei e voltei em condução improvisada. A van pegou engarrafamento na rodovia e eu até dormi, mas acordei no meio da noite, o som gospel em alto volume no carro. Quando o cantor elevava a voz, o motorista empolgado soltava o volante e erguia as mãos em transe. Mas chegamos.
Vontade de chegar em casa. No dia seguinte à Festa Literária de Cachoeira eu já estava em Maceió, para apresentação na Bienal do Livro da capital alagoana. Terminado o trabalho, fui passear pela orla, a lua cheia na praia serena, ao longo da avenida urbana. Vi na areia um grupo religioso, jovens com violão simulando um luau, mas o assunto era muito grave. Novamente muitos “aleluias”.
— Cada um promete fazer sua irmã deixar de ser imoral? Cada um promete lutar para que a universidade não seja ambiente de prostituição?
Segui pela calçada, conheci as barracas, a tapioca, alguns moradores de Maceió e regressei. No retorno comentei com alguns dos rapazes que desarmavam a cena religiosa: “Tem gente com fome! O Brasil precisa de revoluções em tudo”. Responderam com o código que tinham, excitados: “Jesus te ama”.
Vontade de chegar. Segundo as Escrituras, na casa do Senhor há muitas moradas.
Nota do autor: Título da crônica tirado da música italiana A casa de Irene, de Nico Fidenco, que diz “I giorni grigi sono le lunghe strade silenziose / Di un paese deserto e senza cielo.” (“Os dias cinzentos são como as longas estradas silenciosas / de um país deserto e sem céu.”)
Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante também na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017), na Festa Literária de Paraty 2018 e em outros eventos literários. Tem contos publicados na Revista Gueto e na Ruído Manifesto.