happyland, um conto de Natal de Marcos Vinícius Almeida

No meu primeiro dia na agência HappyLand, eu estava destruído. Tinha acabado de me separar. Minha mulher se apaixonou por um cara. Algo difícil de engolir, mas também um tanto comum. Acontece o tempo todo, com todo mundo, eu repetia. Mas a coisa toda se tornou um bueiro sem fundo quando descobri que ela andava há meses trocando mensagens com esse cara e esse cara, na verdade, nem era um cara. Era um pastor. O diabo de um pastor. Pastor e síndico. Eu o tinha visto algumas vezes. Estacionando um SUV platinado, com adesivo traseiro EU ❤️ GRANJA VIANA, na padaria ao lado do prédio. Um panaca escroto.

Descobri a senha do telefone, vi um monte de coisas, dessas coisas que é melhor nunca saber. Juntei tudo que era meu — um punhado de livros, uma guitarra sem a última corda, duas malas de roupas — e mudei para o sofá da minha irmã. Um lugar pequeno, com vizinhos barulhentos, numa rua sem saída do outro lado da cidade. Eu mal sabia pegar ônibus por aqueles lados e os livros não cabiam na casa. Tive que empilhar as caixas na garagem. E toda vez que olhava aquelas caixas destampava a chorar.

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Era véspera do meu aniversário. O primeiro aniversário que passaria longe do meu filho nestes cinco anos. Minha irmã pediu uma pizza. Então eu tirei essa selfie, com o filtro de 8mm do Instagram. Para documentar o momento, ou seja, capturar um fantasma.

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Ser feliz é nosso negócio. O slogan laranja neon cobria toda a parede da recepção da agência HappyLand. Uma mulher negra de dreadlocks e All Star amarelo me atendeu sorrindo, ligou para alguém e me mandou esperar. Cimento queimado. Encanamentos expostos tingidos de laranja. E meia dúzia de quadros de mil cores mais ou menos abstratos. Nunca tinha visto nada parecido. Depois de dois anos vivendo na bolha austera do mundo acadêmico, e frilas no jornalismo e no mercado editorial, jamais imaginaria algo deste nível. Lugares nos quais um joelho de cano expressasse com todas suas forças a Estética da Grande Felicidade Universal.

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Nos primeiros dias fora de casa, minha cabeça funcionava em outra rotação. Lembrei de uma memória antiga. Quando era criança e andava de fusca com meu pai. Um sovina desgraçado. Sempre desligava o motor na ladeira, pra economizar gasolina. Pisava na embreagem, engatava o ponto morto e acelerava uma última vez. O silêncio que vinha depois daquele clique na chave sempre me pareceu uma explosão invertida. As árvores lá fora passavam meio segundo mais lentas. Naqueles primeiros dias de separação, minha cabeça trabalhava com meio segundo de atraso. Uma névoa temporal. Então eu saía e perambulava pelo centro. Acordei uma vez na casa de uma jornalista, semidesconhecida, de calça jeans, com um gato preto dormindo no peito. E num sábado de chuva terminei a noite chorando nos braços de uma garota de programa — que rodava bambolês fosforescentes em rave —num motel barato da Augusta. Minha vida sequestrada por algum letrista de samba dos anos quarenta. Sonhava com estantes.

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A Estação Santana foi inaugurada no dia 26 de setembro de 1975. Durante 22 anos e 7 meses foi ponto-final da Linha 1–Azul, em sua parte norte. Copiei isso da Wikipédia. Hoje, o ponto-final é a Estação Tucuruvi. Depois da Tiradentes, o trem sai do túnel subterrâneo e trafega pela superfície. Em dias de chuva, é uma cena bonita, se a gente prestar atenção naqueles telhados tristes e prédios decadentes vistos por cima do chiado de metal. Não tanto como antes, mas sempre que entrava na Linha Azul, ainda ficava parado olhando aquelas placas, aquele enigma milenar, as palavras: Jabaquara ou Tucuruvi.

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Artur me disse que você é muito criativo, disse o Diretor de Criação. Era um cara de cabelos encaracolados, bochechas de tomate e camisa florida chamado Maurício e a especialidade do Maurício era deixar todo mundo à vontade. Eu trabalho bastante com texto, eu disse. Há bastante tempo. Mas nunca trabalhei em agência. Maurício sorriu. Um cara talentoso como você tira isso de letra. Eu sorri de volta. E cada sorriso tinha o custo colateral de um prédio implodindo sob as costelas. O trabalho é simples, disse Maurício. Estamos com um job gigantesco, com deadline curto. Cartões de Natal. Mensagens felizes, fofas, alegres. E personalizadas. Um pack diário de cinquenta. Daqui, até à véspera de Natal. Parece ótimo, eu talvez tenha dito, ou apenas pensado em dizer.

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Perto da estação tem uma rua de nome Ezequiel. Nunca tinha reparado.  Teve dias que eu não consegui voltar pra casa que não era a minha casa. Então parava naqueles bares de cadeira de plástico nas ruas paralelas. Ezequiel viu o céu de abrir. E nunca mais parou de escrever. Saí do bar pra pegar o último ônibus. Cheiro de óleo sob o vento de agosto. Então um cara muito parecido comigo (mochila nas costas, meio bêbado, barba e cabelos descuidados), passou do meu lado. A semelhança era tanta que me deu um arrepio no braço. Andei atrás dele, mas andava rápido demais.

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Eu tinha encontrado o Artur, numa sexta, e contado tudo. Preciso de um emprego novo, eu disse. Ele pediu meu currículo e três dias depois eu estava sentado num coworking, com baias coloridas, um banheiro tocando música, emojis sorridentes em balões, na agência HappyLand. Eu sentava ao lado de um menino de uns vinte anos, diretor de arte, que costumava rezar antes de esquentar a marmita. Aquilo acabava comigo. Ou quando eu subia num patinete no fim do dia, e via aquela placa na esquina: Shopping Granja Viana. Eu precisava me inspirar pra escrever. Então colocava Nelson Cavaquinho no Spotify. Abria o Word. E escrevia. Com raiva. Serotonina lá embaixo, sem parar. Cartões de Natal, e-mails de Natal. Os cartões de Natal mais felizes do mundo.

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A rua da casa que não é minha se chama Manoel de Deus. É uma rua sem saída. Na casa que não é minha tem uma área de serviço fechada, cheia de grades, que dá para uma outra de serviço aberta, com outras grades. Nos dias quentes, eu ficava ali parado olhando nos vãos, tentando avistar o horizonte, fumando meu cigarro. Uma luz mercúrio alaranjada caía sobre elas e construía mais uma camada. Grades fantasmas. Achei aquilo muito bonito.

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Na véspera de Natal, fiz o que sempre fazia. Acordei por volta das sete. Fumei um cigarro e atravessei a cidade. Estava chovendo e o metrô um tanto vazio e o combinado era trabalhar até meio dia. Já tinha terminado meu trabalho por volta das onze e saí dali onze e meia. Ia passar numa livraria e comprar o presente do meu filho. Edição especial e ilustrada de Harry Potter. Quando lembrava dele imitando um Expecto Patronum, meus ossos das costelas paravam de queimar. A livraria estava cheia. Essas crianças quase sempre tropeçando por todos os lados. Demorei um pouco entre as estantes, folheando livros que já tinha, até me deixar surpreender por algo novo. Na fila do caixa, uma moça de cabelos pretos-chumbo carregava um monte de livros, abraçados, junto ao peito. Vi seu rosto só de relance, meio de lado, um relâmpago — meio turca, indígena, espanhola, uns olhos impossíveis. É terrível e não tem volta. Livre-arbítrio, essa palavra oca. Um chicote de ar. Tinha um punhado de anéis nos dedos e quando foi atender o celular, os livros despencaram. Putz grila!, ela disse. Eu sou um desastre! Me abaixei. Um livro verde, de umas quinhentas páginas, chamou minha atenção. Metamorfoses, de Ovídio. Eu o peguei. Adoro esse livro, eu disse. Ela me olhou dos pés à cabeça. Mexeu no cabelo. Um tanto estrábica. E sorriu de canto de boca, uns lábios bravos. Olhos arrogantes de tão pretos, tristes e sem fundo, e vivos. Tô usando numa pesquisa, ela disse. Olhou minhas mãos segurando o livro: mas tô só começando. Entreguei o livro pra ela. Ficamos ali parados. Olhando um para o outro. Parados em silêncio no meio daquela livraria barulhenta. Quer tomar um café?, eu disse, mas a voz saiu despressurizada, numa língua muda, incompreensível, jamais proferida antes. O quê?, ela disse — e ela pisca os olhos muito depressa quando fica em dúvida. Nunca vi olhos tão ambíguos. Preciso ir embora, ela disse. E ficou ali parada, me olhando, com os livros enroscados no corpo. Ah, tudo bem, então, eu disse. E fui pagar minhas compras. Quando terminei, ela ainda estava ali parada, do lado da fila, olhando para loja inteira e para lugar nenhum. Passei perto dela de novo, sorri um tanto sem sorrir. Então ela disse, meio tossindo, num estalo: Escuta. Parei ao lado dela. Mudei de ideia. É mesmo? Peguei uma das sacolas. Ela sorriu aquele riso meio sem fôlego. Conheço um lugar aqui perto. Acho que você vai gostar.

Marcos Vinícius Almeida, escritor e jornalista, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e autor de Paisagem Interior (Editora Penalux). Curador editorial da revista gueto, publicou trabalhos na Ilustríssima, Época e Cult. Vive em São Paulo. Site: https://mvalmeida7.wixsite.com/marcosalmeida