alguns poemas de amor, de Ruy Espinheira Filho

EPIFANIA

Alguns anos não consigo
deixar nas águas do Lete:
os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete.
Muitas coisas se afogaram,
e rostos, e pensamentos,
e sonhos, e até paixões
que eram imortais…
_______________Porém,
os meus magros dezessete
e os teus catorze morenos
não entram nem em reflexo
nesse Rio do Esquecimento.

Que magia nos levou
a um espaço e a um momento
para que de nós soubéssemos:
tu, meus magros dezessete;
eu, teus catorze morenos?
Que astúcia do Imponderável
nos abriu aqueles dias
que permanecem tão claros
como quando nos surgiram?
Eu não sei. Mas sei que a vida
nunca mais me foi vazia.

Como não foi fácil, nunca,
por tanto me visitarem
os Arcanjos da Agonia.
Pois, se fui iluminado
por estarmos lado a lado
— os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete —,
seria fatal que também
viesse a sentir a alma
em chagas multiplicadas
por setenta vezes sete.

Ah, os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete!…
Quanto sofrimento fundo
— mas quanto sonho profundo
e alto!
_______________Que belo mundo
foi-me então descortinado,
porquanto me era dado
o privilégio preclaro
de penar de amor no claro,
no escuro, em todas as cores,
em todos os tons da vida,
dia e noite, noite e dia,
varrido ao vento das asas
dos Arcanjos da Agonia
(que eram, por algum prodígio,
os mesmos da Alegria!…).

Ah, que por mim chorem flautas,
pianos, violoncelos,
as cachoeiras, os céus
comovidos dos invernos…
Chorem, chorem, que mereço
essas lágrimas, porque
tudo sofri no mais pleno
de paraísos e infernos.
Que chorem…
_______________Mas eu, eu mesmo,
não choro… Como chorar,
se mereci essa dádiva
de um amor doer na vida
por setenta vezes sete
mais que qualquer outra dor,
mais que qualquer outro amor?
Só me cabe agradecer,
pois a vida perderia
(e, o que ainda é mais cruel,
sem nem saber que a perdia…)
se não provasse os enredos,
insônias, febres, venenos
que em meus magros dezessete
acendeu a epifania
dos teus catorze morenos!

SONETO DA NEGRA

a Maria da Paixão

A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.

Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.

O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela a fera.

E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.

VOO CEGO

Um pássaro te procura
na cidade adormecida.
Vai em voo cego: seus olhos
só verão quando te virem.

E onde te ver? Não sabe.
Só conhece o procurar,
indiferente às ressacas
do vento e ao seu cessar.

Pássaro, a noite já finda
e continuas trevado
pela flama que não viste
nos olhos da procurada!

Eis que retorna como em
outras tantas madrugadas,
trazendo nada da busca
em suas asas exaustas.

Frágil perfil, contra a aurora,
de um cinzento voo desfeito,
ele se transforma em vácuo
e se recolhe ao meu peito.

SONETO DO ANJO DE MAIO

Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me

o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida – e a mágoa desertou-me.

Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!

Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!

CAMPO DE EROS

Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.

E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.

E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),

o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes

a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.

Amor. Do extinto pássaro, o voo
prossegue, inexorável. Mas perdoo,

eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,

amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,

e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor

por toda parte trucidado e em flor.

Ruy Espinheira Filho é baiano de Salvador. Poeta, cronista, contista, romancista, recebeu algumas das principais premiações literárias do país, como o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa (1981), o Prêmio Ribeiro Couto de Poesia (1998), o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2006) e o Prêmio Jabuti de Poesia (2º lugar, 2006), entre outros. Aposentou-se como professor de Literatura Brasileira no Instituto de Letras de UFBA em 2010.