kalunga, auê, poema de Neide Almeida

Em nossos mares
ainda são muitos os navios malditos
imensos, sufocantes porões
odor de maresia e sangue
ainda inundam as memórias de nossa gente.
Essas águas não nos embalam
arrancam a vida de nossas entranhas
devoram nossos filhos
enlouquecem as mães de nossas crianças.

O fundo dos oceanos
está coberto de disformes pedras de sal
tíbias, mãos, crânios
fósseis curados por lágrimas,
vertidas das vísceras de nossos ancestres
que desde sempre permanecem
invocando as mãos de Xangô.
Encosta o ouvido na concha,
escuta o grito!

A areia das nossas praias
está repleta de banzo
corpos de nossa gente
estirados sob o sol
continuam sendo devorados.
Bandos de aves de rapina
roubam dos nossos
o pulso, as vértebras, o vigor.
Sente na pele o eco dessas dores!

As ondas dos mares que somos
estão sempre tão cheias
prenhes, reverberam indignação.
Arregalamos os olhos e nos lançamos nas águas mais turbulentas
nossas meninas, os meninos nossos
sendo surrados nos recifes
jogados em alto mar como redes de pesca
arrastados, esvaziados
extenuados,
ainda assim nos cabe
converter essas águas
Kalunga, auê
Kalunga, auê
kalunga, auê

Neide Almeida é escritora, poeta, produtora cultural pela Fio.de.Contas Produções.