Espero que o fato de uma morta voltar para narrar o resto de sua história não os assustem, não há motivo para espanto, não há qualquer tentativa ou indício de originalidade neste fato, Brás Cubas fez isso e ninguém o recriminou, achei que seria de bom tom usar do mesmo artifício, já que em carne, osso e palavras minha vida fora toda dedicada a narrar as tragédias alheias, por que temeria contar minha própria desgraça?
Confesso que minha vida poderia ter sido muito, muito melhor, no entanto, escolhi a via tortuosa da literatura e não foi por falta de aviso ou por ignorância bibliográfica, já tinha lido centenas de escritores, cuja biografia descrevia homicídios, prostituição, alcoolismo, morte súbita, suicídio e uma conta bancária risível. Não acreditei em nada disso, nunca matei com minhas próprias mãos, bebi tudo que pude, entornei garrafas e mais garrafas, fiz sexo descompromissado, verdade que nunca cobrei por uma chupada, bem, minha conta bancária sempre fez jus ao meu papel de escritora marginal.
Apesar das evidências pouco favoráveis, nada me tirou da cabeça que ficaria para história e tive isso confirmado em um sonho com o meu avô defunto, ele confirmou a minha sina, parece que nasci mesmo com a bunda virada para Lua, nada me dissuadiu da ideia de ser uma grande escritora e entrar para os anais da Literatura mundial, com direito a pompas e prêmio Nobel, claro que faria como Cortázar, não aceitaria o prêmio e daria um salto ainda maior na minha imortalidade.
Pouco escutei os conselhos de amigos ou escritores caquéticos e fracassados, digo, senhores escritores de idade um tanto quanto avançada, eles viviam tentando me convencer da sandice da minha ideia, se davam como exemplos, explicavam com detalhes tudo que deixaram para trás para seguir essa dama ingrata. Porém, via aquilo como puro despeito, provavelmente não queriam ver uma mulher prosperar. Vocês sabem como são as coisas, é um homem ver uma mulher crescer e logo quer cortar o mal pela raiz, morrem de medo que suas esposas sigam o mesmo exemplo. Não dei corda e também não dei outra coisa, eles já não se interessavam pelos prazeres da carne, o que realmente é uma pena, meus maiores favores consegui através de uma boa abertura de pernas e isso mesmo sem saber um passo sequer de dança.
Deixei uma carta mais parecida com um bilhete, não achei conveniente explicar em detalhes o motivo do meu suicídio, uma escritora é escritora até o fim, eu precisava dar margens para que a história tomasse forma na boca do povo, explicar demais estragaria a minha fama e quando morri ainda não tinha galgado o posto de maior escritora da literatura mundial, portanto, essa era a minha última chance, não poderia desperdiçá-la.
Não pensem que tirei minha própria vida em vão, por loucura, paixão ou desespero. Tive tantas paixões que se me matasse cada vez que me apaixonasse não sopraria morte para o fim. Quanto à loucura e ao desespero estive a vida inteira acompanhada por eles, eram totalmente inofensivos. A minha morte foi milimetricamente calculada e totalmente dedicada à literatura. Eu sei que muitos acharão um despautério sem tamanho tirar a própria vida em nome da arte. Contudo, o que somos nós sem a Arte? Reles animais desprovidos de rabo. Não me julguem, vi muita gente se matar por paixão não correspondida ou por fome passageira, guardem suas indignações para estes. A minha causa foi nobre. Finalmente sairei desse mundinho mesquinho e entrarei nas páginas dos livros, ou melhor, daqui alguns anos ninguém se lembrará do meu rosto, mas terão na boca todas as minhas histórias. E elas passarão de geração a geração e terei cumprido fielmente meu destino.
Já me expliquei além do necessário, agora vamos ao que interessa. Morri faz sete dias, como sabem, normalmente fazem missas para a morta no sétimo dia, comigo foi diferente, afinal, sou uma grande escritora, então, resolveram fazer uma homenagem em uma livraria esnobe, em um bairro rico da cidade. Vocês sabem, para ser considerado uma escritora de primeira é preciso ser comunista e comemorar em um café que sirva champanhe francesa. De qualquer forma, morta não paga, mas também não bebe, embora posso fingir pegar a taça e levar aos lábios vaporosos. Se soubesse que morrer era essa facilidade teria me matado antes, evitaria minha preocupação constante em como quitar o aluguel e o medo da água e da luz serem cortadas. Sem carne é uma beleza, ficamos vagando e não pagamos por nada, agora entendo porque ninguém divulga sobre o morrer, não haveria um ser vivo sobre a terra.
Bem, mas não estou aqui por isso, quero me prestigiar e provar para todos vocês que a minha ideia foi genial. Vejam, olha só, a livraria está lotada, nem eu sabia que tinha tantos fãs, decerto a maioria consegui depois da morte, porque em vida raramente vendia mais que dez exemplares e metade eram vendidos para homens que tinham a intenção de trepar comigo, e a outra metade para os que já tinham trepado e queriam repetir. Estou realmente impressionada com a quantidade de gente! Gente de todas as idades! Eu tinha certeza que o meu suicídio funcionaria, mas confesso que imaginava que levaria mais algum tempo. Estou rindo aqui só lembrando daqueles parentes e amigos infernais, com risinhos no canto da boca quando eu dizia que seria uma escritora lida no mundo inteiro, estou vendo a cara deles de arrependidos por terem doado os meus exemplares para as bibliotecas do bairro. Já estou vendo os milhares de exemplares que tenho empilhados em casa sendo disputados a tapa, no estilo de venda daquelas lojas de eletrodomésticos que fazem promoção no final do ano. Como é bom o sucesso!!!!! Isso é para os idiotas que não acreditavam no meu trabalho, para os que me chamavam de putazinha metida a intelectual. Quem é a puta agora?
Nossa, olha só aqueles dois, um deles está com o meu livro na mão, eu o conheço, o rosto não é estranho, não lembro se já… Ah, acabo de me lembrar, nunca tive nada com ele, só mandei alguns nudes inofensivos, fiquei com pena do coitado, tão feio, não devia ser muito fácil arranjar sexo, então, me compadeci e enviei umas fotos para ajudar na punheta.
Vou encostar neles, nem acredito que poderei fazer isso!!!!! Desde criança sonho com isso, ser invisível e poder escutar tudo que falam sobre mim:
— Pelo tanto de gente aí dentro ela deveria ser uma escritora e tanto!
— Que nada! Esse pessoal todo não veio por causa dela não, é um autor estrangeiro que está autografando lá dentro. Um dos ex-maridos da escritora doida é influente no high society e insistiu para que fosse feita uma homenagem à ex-mulher, nunca leu uma página do que ela escreveu, mas achou que devia isso a ela. O dono da livraria aceitou torcendo a cara, deixou uma mesinha escondida com os livros.
— Mas, vi que você está com o livro, então, deve gostar.
— Para te falar a verdade, o dono da livraria está empurrando os livros para os clientes, está dando de graça, com certeza não quer que fique ocupando espaço no estoque, ele sabe que não vai vender mesmo.
— Você acha também que é tão ruim assim?
— Não posso dizer nada, nunca li uma linha do que aquela ninfomaníaca escrevia!
— Sério?
— Claro! E duvido que tinha algum leitor sério, os homens acompanhavam seu perfil apenas para apreciar as fotos pornográficas que colocava por lá, costumava colocar uns textos junto, mas tenho certeza que ninguém tinha paciência pra ler.
— Que coisa! Começando a ficar com pena da defunta…
— Não fique! Teve cinco maridos e as más línguas comentam que saía com todos ao mesmo tempo depois do divórcio, dizem que se aproveitava dos coitados para conseguir favores literários.
— Pelo jeito não funcionou.
— Não mesmo! Gastava feito uma doida, parece que se endividou até o pescoço e os ex-maridos se recusaram a ajudar.
— Então, foi esse o motivo do suicídio?
— Pode ter certeza que foi, deixou um bilhete que não dizia lé com cré, a única palavra que dava para entender era Nobel e Cortázar, ninguém viu sentido naquilo, acho que ficou envergonhada de admitir que tirava a própria vida por causa de dívidas.
— E os livros? O que acontecerá com eles?
— O último ex-marido encontrou um quarto repleto de exemplares do livro novo e dos antigos. Mandou cremar junto com o corpo. Era mais fácil do que vender.
Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (edição independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Editora Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa Books, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota Editora, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota Editora, 2014) e O enterro do lobo branco (Editora Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018.