a fera, primeira parte, poema de Prisca Agustoni

Caronte é uma esfinge
e é também camaleão,
já andou na estrada
de ferro e canhão,

cruzou o continente
de leste a oeste
nas trilhas de escombros
e sapatos solitários

expulsou a máquina
do mundo pra fora
do caule da existência
mais dilacerada

descalço avança
com sua cadência
e seu disfarce,

toca vagaroso a litania
nas vértebras inflamadas
de Vladimir e Dante,

cospe nas rimas,
na espinha de sangue
e concreto de Ossip
Mandelstam

tripudia dos ossos
da raiva do fogo
nas ruas ele ri
da cartilagem das horas

que despencam
pela fuligem
pelos gases
lacrimogénios

seu riso é um escárnio
feroz e lancinante
como bala insuspeita
adentrando na carne

seu palco é a derrocada
do humano, do átomo
no descampado
da alegria deformada

amoral é este cão
que agoniza na estrada,
a pomba suja feita
ratazana no verso
de Donizete Galvão

indecente é o gozo
diante da unha encravada,
o nítido projeto
de um país estrangulado

mas a ardência do grito
preso no peito
se espalha como mancha
de petróleo no oceano

até um dia ser esse inchaço
essa pústula infecciosa
uma força represada

e da agonia dos gagos
forjar enfim o novo dicionário
que defina a fúria
e a combustão
de uma língua alucinada

Prisca Agustoni é poeta, tradutora e professora. Escreve e se auto traduz em português, italiano e francês. Suas obras mais recentes são: Un ciel provisoire (Genebra, Samizdat, 2015), finalista do Prêmio Lettres-Frontière; animal extremo (São Paulo, Patuá, 2017) e Casa dos ossos (Juiz de Fora, Macondo, 2017), semifinalista do Prêmio Oceanos. Tem no prelo duas coletâneas de poemas a sair na Itália em 2020. Este poema foi extraído do livro de poemas que está no prelo para início de 2020 com a Editora Quelônio, de São Paulo.