mil marias
Quando Maria nasceu
a roda da vida parou
miúda de tão pequena
no parto convulsionou
mas forte era Maria
teimosa ela viveu
pra perceber que seu
plano de vida prevaleceu
Maria não tinha nada
de coisas nem de valor
mas tinha no seu esteio
sua família e amor
Maria foi à escola
disseram que ela podia
pra que se enchesse de
sonhos pensando que merecia
Maria foi alvejada
três tiros no meio da quadra
Maria não era turista
sofreu violência classista
Corpo de menina acostado
promovido pelo estado
assassino genocida
de todo preto e favelado
Maria nem se deu conta
seu corpo mal sentiu dor
mas a comunidade sabe
que o preço da vida tem cor
Maria não é estatística
é uma menina emblema
e em nome da sua memória
Maria virou poema
| poema do livro Desanônima (Autografia, 2017). |
* * *
Tereza olhou-me
meteu medo até em xangô
como um rio e seu poder
adentrou em mim
aventurou-se de mim
Nos olhos lustrados de Tereza
centelhas podem ferir
seu flanco não é mais o mesmo
não é mais do mesmo
seu flanco é todo ele meu flanco
meu flanco nunca será o mesmo
depois de suar sob o teu
Seu beiço vasto decretava
a ascendência que salva
o mundo da feiura
pelo cabelo aproximei-me
ajoelhei, pedi uma benção
Tereza, isto é uma carta:
— Quero beijar-te agora.
Salva-me!
* * *
Envenenei o céu pra que você
não visse morrer a segunda filha
o socialismo é um programa
é uma fenda no meu umbigo
é uma pasta de grão de bico
sob uma torrada com azeite
cancelei o café diário
que equivale ao suicídio sem extremismos
quantos estômagos são necessários
pra digerir a graxa que você passou?
quantos fígados precisas
pra filtrar todo álcool necessário
de seguir viva?
Perguntam-me como estou?
efetivamente viva
por vezes, nem tanto
quase sempre
esta parte, omito
omissão é a caverna eficiente dos ineficientes
não se compartilha maledicências
dores amargores brotoejas
feridas abertas são constrangedoras
e já não há mais ninguém em condições
tenha selfies sorridentes e esbeltas
braços abertos, rei do mundo
as minorias se adequam
ou desaparecem
antagonismos a parte
o socialismo é um programa
Manuella Bezerra de Melo, jornalista nascida em Pernambuco, foi repórter e especializou-se em Literatura Brasileira e Interculturalidade. É poeta, cronista de rede social e autora infanto-juvenil. Quando viveu nas Serras de Córdoba, na Argentina, publicou sua primeira obra, Desanônima (Editora Autografia, 2017). Já em Portugal, publicou Existem Sonhos na Rua Amarela (Editora Multifoco, 2018) e Pés pequenos pra tanto corpo (Editora Urutau, 2019) e participou da antologia Pedaladas Poéticas (Editora Aquarela Brasileira, 2017). Mora em Guimarães e dedica-se a um mestrado em Teoria da Literatura na Uminho.