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O paciente morreu algumas semanas depois. Mesmo assim, o primeiro transplante de coração realizado no Brasil foi considerado um enorme sucesso. O professor Euryclides de Jesus Zerbini, chefe da equipe que esteve à frente do procedimento, preocupava-se sobretudo com uma possível rejeição do órgão, problema debatido em inúmeros cursos e congressos pelo mundo e que ainda não havia obtido nenhuma solução satisfatória pela comunidade médica. Não foi o que aconteceu. João Boiadeiro, o receptor, recuperou-se bem. O cuidado da equipe médica o protegeu do assédio e seu quarto no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo permaneceu um lugar calmo, em que as pessoas sorriam e falavam com ele em voz baixa e pausada.
— Que bom que agora está tudo bem, João — uma enfermeira repetia de vez em quando, com um sorriso sincero no rosto. — O transplante deu certo, parabéns.
Segundo os jornais, João Boiadeiro na verdade não sabia o que é um transplante. Ninguém se preocupou em lhe explicar e ele, com alguma esperança e muita resignação, não quis perguntar. Deu certo.
Talvez as coisas não tenham sido bem assim. A equipe do doutor Zerbini, sempre ciosa e com a voz baixa, conversou muitas vezes entre si perto dele, tanto antes quanto depois da operação. Alguns alunos (apenas os melhores) também ouviram inúmeras explicações naqueles dias. Meu tio, por exemplo, olhou diversas vezes para o paciente, que parecia acompanhar tudo muito atento. Ele entendia muita coisa, sim.
Cientes do histórico de depressão do primeiro brasileiro que recebeu um transplante de coração, médicos e enfermeiros sempre o animavam e, com a voz cheia de orgulho, cumprimentavam-no pelo sucesso da equipe. Quando o quarto ficava vazio, antes de dormir muitas vezes João imaginava a cena que os doutores descreviam uns para os outros: o coração saiu do doador e foi direto para ele, ainda batendo na bandeja. Não houve espera e muito menos qualquer tipo de parada cardíaca. Deu muito certo.
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O prontuário médico de João Ferreira da Cunha, o nosso João Boiadeiro, tem apenas informações clínicas. Enquanto a imprensa francesa noticiava o apaziguamento das revoltas naquele final de maio, com uma gigantesca manifestação em apoio a de Gaulle, a nossa aqui deu bastante destaque ao transplante. Não houve, porém, nenhum tipo de esforço para conhecer a vida pregressa do rapaz melancólico e calado que viveu 28 dias com o coração de outra pessoa pela primeira vez no Brasil.
Até ali, diversas cirurgias haviam sido realizadas em cães. Nenhum passou mais de duas horas respirando com o coração de outro animal. O que fez a equipe do doutor Zerbini ter fé nesse tipo de transplante em humanos vivos no Brasil foi o sucesso com que o doutor Christiaan Barnard realizou o mesmo procedimento, no final de 1967, na África do Sul.
Zerbini se impressionou com o resultado. Muito infelizmente, Louis Washkansky, o primeiro homem a viver com o coração de outro, morreu 18 dias depois da operação, vítima de uma infecção. Esse incidente, por favor, não deve desanimar os outros médicos daqui em diante, repetiam todos. O caminho é a natural evolução do procedimento e dos remédios que, posteriormente, garantirão a vida dos pacientes. Foi o que aconteceu.
Se o colega do outro lado do oceano tinha conseguido, o que nos impediria também de ter o mesmo sucesso? Afinal de contas, a África do Sul nunca foi exatamente uma vanguarda na medicina, lembro-me do meu tio repetir isso com o rosto meio ambíguo. Normalmente as pessoas não viam a menor graça nesse tipo de tirada. Ele, por outro lado, às vezes quase engasgava de tanto rir. Quando ele morreu, fiquei triste de verdade, apesar de tudo.
João Boiadeiro deu entrada no Hospital das Clínicas depois de tentar se suicidar no Albergue Alegria, onde estava morando desde que chegara a São Paulo, dois ou três meses antes. O prontuário não diz como ele tentou tirar a própria vida, mas aponta um quadro depressivo causado por uma fraqueza. Ele a descrevia como cada vez mais crescente. Nos últimos meses, ondas de cansaço súbito o impediam de trabalhar na fazenda onde vivia no Mato Grosso com a irmã. Essa última informação não está no prontuário, mas sim nos jornais que meu tio guardou.
O Albergue Alegria teve o mesmo destino que seus hóspedes. É bastante difícil encontrar informações precisas sobre ele. Segundo os poucos registros que constam no Arquivo Público do Estado de São Paulo, funcionava em um galpão adaptado para receber pessoas que chegavam a São Paulo de trem na Estação da Luz e não tinham exatamente para onde ir. Algumas davam sorte e encontravam um parente com um cantinho na sala, outros percebiam que não conseguiriam nada melhor do que já tinham antes e voltavam para a sua cidade depois de uma semana no Albergue Alegria. Vários passavam meses ali, atrás de emprego, conversando e jogando cartas ou dominó. Certos moradores só saíam da cama quando os poucos funcionários os incitavam. No geral, iam dormir por ali mesmo, na calçada, já que a região era sua única referência. A depressão, portanto, era corriqueira. Dois homens procurados pela polícia política passaram três meses em segurança, depois de terem a feliz ideia de se misturar àquelas pessoas. Dali, foram transportados para a fronteira com a Bolívia e depois de subornar dois guardinhas sonolentos, fugiram do Brasil.*
Algumas coisas nunca mudam por aqui.
* Caso haja algum interesse sobre os dois e, mais ainda, quanto a esse tipo de ação durante a ditadura, quem os transportou foi a escritora Maria Valéria Rezende, que naquele momento tinha um documento diplomático emitido pelo Vaticano.
Ricardo Lísias nasceu em 1975, em São Paulo. Publicou em 1999 o romance Cobertor de estrelas (Editora Rocco), traduzido para o espanhol e o galego. Em 2001 publicou Capuz (Editora Hedra), e, em 2004, Dos Nervos (Editora Hedra). Duas praças (Editora Globo, 2005) foi o terceiro colocado no Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2006. É autor também do livro de contos Anna O. e outras novelas (Editora Globo, 2007), finalista do Prêmio Jabuti de 2008, e O livro dos mandarins (Editora Alfaguara, 2009), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. É autor ainda dos livros infantis: Sai da Frente, Vaca Brava (Editora Hedra, 2001), Greve Contra a Guerra (Editora Hedra, 2005) e A Sacola Perdida (DSOP, 2014).