dois contos breves de Flávia Helena

desaguar

Notou, primeiro, pelo seu tamanho em relação à vassoura.

Uma semana trabalhando naquela casa e não conseguia mais alcançar o alto do cabo.

Depois foram as roupas.

Tropeçava nas barras das calças, de tão compridas. Não conseguia usar os vestidos, porque as cavas do pescoço escorregavam pelos ombros.

Estava encolhendo. Rápido.

Viu que precisava ir embora, quando, num domingo, depois de fazer cocô, quase caiu no vaso e misturou-se às fezes que acabara de eliminar.

Não queria parecer ingrata. Sabia o quanto os patrões a haviam ajudado.

Se não fosse o seu Rogério, ela nem teria onde ficar quando veio daquele fim de mundo. E o quarto até que era bom. Tinha televisão, chuveiro quente. Eles também não pagavam todos os direitos, mas o salário não era dos piores.

Decidiu, então. Partiria sem se despedir.

Foi numa quarta-feira.

Acordou cedo. Preparou o café. Arrumou os quartos. Lavou a roupa. Tratou dos bichos. Varreu a cozinha. Ajeitou o closet da dona Patrícia. Adiantou o almoço. E notou que estava diminuindo cada vez mais depressa.

Não tinha o costume de deixar o serviço assim, pela metade. Só que, naquele dia, não teve escolha.

Se continuasse trabalhando ali, iria desaparecer.

Pequeninha que estava, escalou as portas do gabinete da pia. Mergulhou na cuba cheia de água e louça e entrou no ralo.

Saiu já na rua. Pelo bueiro.

* * *

palavras que entram pela boca

Passava as aulas dando tapas irritados no ar.

Não eram insetos, ao contrário do que se pode pensar. O que o garoto queria era espantar as palavras que não conseguia compreender.

No começo, a fim de se resguardar, tentou fugir para um canto da sala aonde elas não chegassem. Mas, advertido pelos professores, teve logo que se acomodar em uma carteira mais à frente.

Mesmo assim, passava o tempo todo distraído, como se não entendesse nada do que acontecia ali.

— Não é má vontade! É dificuldade mesmo. Quando nós fomos embora pro Japão, ele era pequeno. Mal falava. Foi alfabetizado lá, inclusive.

Apesar da justificativa da mãe, tentando explicar o comportamento do filho na escola, a coordenadora insistiu:

— Mas é necessário que o aluno interaja com a classe. Ele precisa se esforçar. Não tem como fugir pra sempre.

A sorte é que havia uma colega disposta a ampará-lo: Mariana.

Por uma semana, sentou-se ao lado do menino tentando ajudá-lo a fazer os exercícios, copiar as lições e, claro, aprender Português.

Com a menina, ele até se animou. Só que o ambiente não colaborava. Gente demais. Muita conversa.

Por isso, ela achou melhor tentar de outro jeito. Na praça em frente ao colégio.

Sozinhos, colocou, com a língua, algumas palavras na boca do garoto.

Os pelos do corpo todo, arrepiados, mostravam que ele começava a entender o novo idioma.

Três vocábulos foram suficientes.

| contos do livro Sem açúcar (Editora Penalux, 2016), contemplado com o ProAC 2015. |

Flávia Helena é professora de Literatura. É bacharel em Direito pela PUC-SP, licenciada em Letras pela USP e mestre em Teoria Literária pela USP. É autora da peça TRAMA, contemplada com o ProAC 2013, da obra de crítica literária O fabricante de textos (Editora Penalux, 2015), sobre o romance Budapeste de Chico Buarque e da coletânea de contos Sem açúcar (Editora Penalux, 2016). Tem contos e poemas publicados em diversas antologias. Faz parte do Coletivo Literário Martelinho de Ouro.