Subiu as escadas e avançou no carpete com losangos de arlequim no andar de cima do pub, havia passagens com portas escuras e escadas em caracol que conduziam a outros aposentos. Ele/ela em modo gender fluid ia abrindo as portas. Chegaram a um quarto de paredes turquesa, com ilustrações de circo em tons de laranja e vermelho, e luminárias de microfones antigos. Ela se fechou no banheiro com piso quadriculado, branco e preto, aplicou a maquiagem e vestiu a roupa da performance. Uma espécie de acrobata fênix, com uma roupa colante e asas, tudo em negro.
Quando abriu a porta, ele/ela agora era ela. Ela(e) estava pronta para que ela a conduzisse, e portava solene um vestido preto e branco como o piso, sapatos pretos e um petticoat branco. Uma espécie de colombina. Em seguida tomaram êxtase, como num ritual, e encheram os copos de vinho.
A noite passou como uma alucinação retrógrada, onde abraçavam-se simbióticas com a epiderme quente. Ela(e) falava de um vestido queria usar quando criança, o vestido de flor da sua irmã. Foi quando começou a se vestir escondida. Ela(e) estava tão misteriosa aquela noite, tão feminina, e seus traumas subiam à superfície, como balões, enquanto a outra lhe carregava pelas costas, com suas asas. Ela(e) por si parecia levantar voo, e de repente, aterrissou no meio do quarto, um pouco eufórica, rodopiando o seu petticoat.
A outra se conteve, observando. Parecia que haviam saltado de um picadeiro, da altura de uma imagem cinemática. Como num filme de Wim Wenders. No meio da noite adormeceram exaustas depois de tantas cenas extremas, facilitadas pelo êxtase do encontro.
Na manhã seguinte ela tinha se tornado ele. Ele era tímido e metódico, rápido para despertar. Preparou dois cafés na máquina de Nespresso do quarto, e vestiu suas roupas bem passadas de drab. Ela colocou um vestido azul, e calçou as sandálias verdes. Partiram apressados, ainda tontos do delírio. Não havia ninguém quando desceram as escadas, todo o burburinho de pub tinha se evaporado. Na rua eram outros nomes, outras personas, embora ela fosse menos fendida. Ele saiu apressado para pegar o carro, e para evitar qualquer deslize emotivo. Despediram-se desajeitados.
Ela caminhou incerta, mas feliz até a estação de metrô, ou seria ainda o efeito do êxtase? Parou para comer um croissant. Então se deu conta de que se sentia frio. Procurou a jaqueta de couro na mochila. Tinha deixado a jaqueta no quarto. Era de couro legítimo. Evitavam contato telefônico como combinado, mas era uma emergência. Procurou o número guardado numa anotação de celular. Mandou uma mensagem para ele, que não respondeu. Aflita, caminhou de volta ao pub-hotel. As portas estavam trancadas. Dobrou a esquina e tentou a outra entrada. Viu um homem de uns trinta e poucos anos, com roupas brancas e um chapéu de chef, sentado em um degrau, fumando. Explicou a situação. Era cedo, o pub estava fechado, a recepção também. “Não sabe o código da porta?” Ele/ela não tinha lhe dito, mas o jovem chef passou os dígitos. Ia avisar a alguém para encontrá-la na recepção.
Ela digitou o código, deu de frente a uma recepção que parecia de hotel dos anos 50, com uma campainha vintage de cobre. Tocou, ding dong, ninguém respondeu. Subiu as escadas com carpete de arlequim na esperança de alcançar a jaqueta, mas as portas para o andar de cima estavam trancadas. Ela também não lembrava o número do quarto, pois era dada a distrações. Era estranha a atmosfera circense e ainda onírica da hospedaria à luz do dia, pois as janelas estavam parcialmente fechadas.
Saiu divagando no andar de baixo, procurando alguém, e caiu num átrio de madeira escura, um anfiteatro com fileiras e camarotes. Não sabia que neste pub havia um palco, para shows burlescos. De repente se viu trancada num teatro vazio. Como se os atores tivessem partido e a sua jaqueta de couro estivesse inalcançável, trancada no camarim, preta e opaca entre paetês e plumas. Seria uma espécie de pesadelo matinal em wonderland? O que fazia ali, afinal? Teria caído num buraco, como Alice? Como cruzar a fronteira borrada entre ilusão e realidade? Sentiu-se de repente frágil, como uma criança desamparada num labirinto. Pensou em chorar, mas conteve as lágrimas. Disse para si mesma que dominantes não choram. Ela precisava superar seus traumas.
Cheia de coragem, discou o número dele, que atendeu no primeiro toque. Sua voz era diferente, masculina mas cordial. Na prontidão de atender o próximo cliente, embora com um tom reticente. Ele sabia que era ela. Concisa, ela perguntou o número do quarto, que ele emitiu, como um código. Ela desligou. Uma moça austera de tranças apareceu na recepção. Ela explicou o problema. Eu estava aqui com o meu “namorado”. A moça ficou desconfiada. Perguntou se ele voltaria. Ela disse que não. “Como você tem tanta certeza? A chave não está aqui”. Subiram as escadas, e encontraram o quarto totalmente vazio. A jaqueta de couro com tachas estava sobre uma cadeira preta, tão aderida que se confundia com o cenário.
Ela voltou pelo mesmo trajeto até a estação, comeu o croissant, comprou uma garrafinha de suco de laranja gelado. Entrou no trem de óculos escuros. Estava ainda dispersa entre tantas sensações, saltando ainda do picadeiro imaginário, entre a decepção e o encantamento. Ele contemplava uma abóbada de vidro com estrutura poliédrica, aéreo, no centro da cidade. O que fazia ali, afinal? Criou coragem e respondeu a mensagem dela, “achou a jaqueta?”. Da janela do trem ela via o verde, a verdura, o azul do céu, sorria, tomava pequenos goles do suco. Sentiu amor por ela, por ele, por eles, pelo vestido de flor. Respondeu “ainda saboreando a noite”. Mais tarde ele deixou a cidade dirigindo no sentido oposto, e foi divagando na paisagem, e pensando nela.
Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta, tradutora, tem vários livros de poesia e tradução publicados, e prepara seu primeiro livro de contos. Graduou-se em medicina, e vive em Londres, onde trabalha como psiquiatra. Virna dirige uma editora independente na Inglaterra, Carnaval Press, e é editora da revista online Theodora.