carnívoro
quando os dentes se chocam uns com os outros,
os ossos se acrescentam dum inventário
de rachaduras. tal como raízes,
suas rupturas vão fundo no
destino das ruínas e se dão
com os restos em suas imperfeições.
morde-se com força a própria
boca, num exercício de
procurar rastros. depois,
afiam-se os incisivos,
a fim de cravá-los em
seu pedaço mais macio
de carne. é forte o sabor
ácido do sangue ao se
ter tão íntimo a saliva
derramada por diversas
fomes ao longo do tempo.
por horas, a digestão
soa como um carnaval
onde todos estão sem
máscaras… e os dentes à
mostra naquela mordida
sem refúgio e nem alívio…
quebra-se em partes iguais cada fêmur
para que qualquer pedaço talhado
caiba bem cuidadosamente dentro
do sacrifício da saciedade.
ninguém testemunha essa eficiência…
… e todos saem satisfeitos.
* * *
distante como se abrisse
uma janela durante
as horas de frio. o vento
na cara, a rua lá fora.
a sensação seca de uma
paisagem no meio do
peito — ausente —, desde que a
noite se estendeu e se
deu por escurecer mais
tarde… com isso, os invernos
ganharam outro contorno.
a lua cheia foi vista
do meio de uma varanda
esquecida, com a certeza
de que a noite se escondera
numa estação sem retorno.
* * *
desde que se faça tarde é deserto
nervo incerto atacado pela fome
em forma de gente a ferocidade
das palavras acoberta a nervura
verbal do espanto o corpo se consagra
pela violência da secura da
espessura do poema largado
ao excesso despovoado de
costelas carne pele sangue e dentes
nada sobrou após seu abandono
* * *
para Daniele Negreiros
(em resposta a um poema seu)
como se cada passo fosse um céu
repleto de noite. a lua brilhasse
forte no passado enquanto o futuro
jamais surgisse aos viajantes desse
rito. não se pode mesmo olhar o
devir. futuro é o que nos resta de
assombro aos tempos diurnos do engano.
enquanto minhas fadas tramam contra
a velocidade das horas, lanço-me
ao estômago dos deuses para, juntos,
alcançarmos o latrocínio do
sol. toda a verdade será contada
aos meus descendentes e o que nos falta
de vida para a vida será então
o crível enredo ao nascimento dos
meus dias. eternidade é o que me
banha a boca desde cada palavra
tomada por destinos, mas existo.
e insisto no tempo cobrindo minha
cabeça, cobrando a sagrada bênção
pelas manhãs aquecidas em minhas
letras. minha alvorada é quando acordo
no meu corpo quase eterno — poema.
* * *
de dentro de uma tristeza
sem nome ou tamanho que não
corrói mas instala a vida
sem cores ou cheiros o
poema conforta como
a ponte por onde não
se anda e compõe o mais belo
lugar perdido dos sonhos
aquele lugar que se
busca desde antes de
todas as dores que existe
desde antes os olhos se
fecharem todos em flores
Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Autor do livro A hermenêutica do mar — Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento. Assina a coluna “palavra : alucinógeno” [link] na Revista Vício Velho, além de participar como ensaísta em outros livros e periódicos.