cinco poemas de Fábio Pessanha

carnívoro

quando os dentes se chocam uns com os outros,
os ossos se acrescentam dum inventário
de rachaduras. tal como raízes,
suas rupturas vão fundo no
destino das ruínas e se dão
com os restos em suas imperfeições.

morde-se com força a própria
boca, num exercício de
procurar rastros. depois,
afiam-se os incisivos,
a fim de cravá-los em
seu pedaço mais macio
de carne. é forte o sabor
ácido do sangue ao se
ter tão íntimo a saliva
derramada por diversas
fomes ao longo do tempo.

por horas, a digestão
soa como um carnaval
onde todos estão sem
máscaras… e os dentes à
mostra naquela mordida
sem refúgio e nem alívio…

quebra-se em partes iguais cada fêmur
para que qualquer pedaço talhado
caiba bem cuidadosamente dentro
do sacrifício da saciedade.
ninguém testemunha essa eficiência…

… e todos saem satisfeitos.

* * *

distante como se abrisse
uma janela durante
as horas de frio. o vento
na cara, a rua lá fora.

a sensação seca de uma
paisagem no meio do
peito — ausente —, desde que a
noite se estendeu e se

deu por escurecer mais
tarde… com isso, os invernos
ganharam outro contorno.
a lua cheia foi vista

do meio de uma varanda
esquecida, com a certeza
de que a noite se escondera
numa estação sem retorno.

* * *

desde que se faça tarde é deserto
nervo incerto atacado pela fome

em forma de gente a ferocidade
das palavras acoberta a nervura

verbal do espanto o corpo se consagra
pela violência da secura da

espessura do poema largado
ao excesso despovoado de

costelas carne pele sangue e dentes
nada sobrou após seu abandono

* * *

para Daniele Negreiros
(em resposta a um poema seu)

como se cada passo fosse um céu
repleto de noite. a lua brilhasse
forte no passado enquanto o futuro
jamais surgisse aos viajantes desse
rito. não se pode mesmo olhar o
devir. futuro é o que nos resta de
assombro aos tempos diurnos do engano.
enquanto minhas fadas tramam contra
a velocidade das horas, lanço-me
ao estômago dos deuses para, juntos,
alcançarmos o latrocínio do
sol. toda a verdade será contada
aos meus descendentes e o que nos falta
de vida para a vida será então
o crível enredo ao nascimento dos
meus dias. eternidade é o que me
banha a boca desde cada palavra
tomada por destinos, mas existo.
e insisto no tempo cobrindo minha
cabeça, cobrando a sagrada bênção
pelas manhãs aquecidas em minhas
letras. minha alvorada é quando acordo
no meu corpo quase eterno — poema.

* * *

de dentro de uma tristeza
sem nome ou tamanho que não
corrói mas instala a vida
sem cores ou cheiros o
poema conforta como
a ponte por onde não
se anda e compõe o mais belo
lugar perdido dos sonhos

aquele lugar que se
busca desde antes de
todas as dores que existe
desde antes os olhos se
fecharem todos em flores

Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Autor do livro A hermenêutica do mar — Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento. Assina a coluna “palavra : alucinógeno” [link] na Revista Vício Velho, além de participar como ensaísta em outros livros e periódicos.