dois contos breves de Alessandra Barcelar

a sacola

A morte bateu na porta e a pequena Giovanna foi quem abriu.

“Onde está tua mãe?”, perguntou a Morte, em seu vestido preto, seus cabelos ruivos e suas pupilas de fogo cinza.

A garota já a conhecia. Ela a vira há dois meses, no dia em que sua avó não se levantou mais.

“Siga-me”, disse a pequena Giovanna.

Elas caminharam até o final do corredor e chegaram a uma porta, que a garota abriu para demonstrar boas maneiras. O interior estava completamente escuro. As cortinas fechadas e a janela trancada roubaram as cores da sala.

“Obrigada”, disse a morte em sua voz rouca e sensual. Ela entrou e saiu um minuto depois, com um coração em uma sacola de pano.

Quando a morte foi embora, a pequena Giovanna foi até a cozinha, chegando no exato momento em que uma mulher com o rosto machucado e ferido se jogou de uma cadeira. No entanto, a corda em seu pescoço, por algum motivo inexplicável, quebrou como se fosse borracha.

“Mãe”, a menininha murmurou e a mulher virou-se imediatamente. Ela chorou envergonhada e abraçou sua filha como nunca antes.

“Mamãe, lê um livro pra mim?”

“Eu não posso Giovanna, eu devo cozinhar para quando seu pai acordar.”

“Eu não me preocuparia com isso. Eu não acho que ele se levanta”, disse a garotinha antes de pegar um livro.

* * *

depois do fim

Elas se beijaram, e a lua não pode deixar de embrandecer-se um pouco.

Valquiria tirou a blusa com lentidão cerimonial, como se um movimento abrupto pudesse destruir o planeta. Um par de lábios pousou em seus seios, muito perto da alma, com uma delicadeza sobre-humana.

Os dedos de Valquiria viajaram para seu lugar favorito: as costas de Helena. Os lábios de ambas roçaram novamente, como o amor e a morte costumam fazer. Uma chuva tempestuosa e agradável desencadeou-se entre suas pernas.

Um homem olhou tudo de fora, com a testa beijando a janela. Não havia luxúria em seus olhos, nenhum desejo, havia lágrimas. Duas mulheres gozando dentro da cabana e uma delas era a esposa dele.

Ele subiu no cavalo, que relinchou quando sentiu o peso do cavaleiro e o de sua tristeza. Avançou ao longo da planície na direção da lua e um segundo cavalo saiu atrás dele. Este foi impulsionado pela morte, que o seguiu atraído pelo perfume de um coração partido.

Seu orgulho como homem era uma arma que não poderia ser usada neste caso. Sua pistola deveria ser usada em uma guerra entre homens, a revolução, à qual ele estava se dirigindo. Aquele par de mulheres era intocáveis: ele não podia matar sua esposa, muito menos… Sua própria irmã.

Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, e atua na área de Gestão Hospitalar e Economia da Saúde. Publicou contos em várias revistas literárias do Brasil, de Portugal e da Alemanha. Participou em 2019 como jurada do prêmio VIP de Literatura (Categoria Contos), Colaborou na coletânea Conte outra vez, um tributo a 30 anos da morte de Raul Seixas, que obteve grande repercussão na mídia. Atualmente organiza uma coletânea de contos sobre realismo mágico/fantástico com previsão de lançamento para 2020.