o feitiço, de Julie Dorrico

Conto do livro Eu sou macuxi e outras histórias, que a Editora Caos & Letras lançará dia 14 de dezembro [link].

A bisa sentou confortavelmente na sua cadeira de palha. A Ada já estava passando um chá de capim santo, ela já sabia que na boca da noite minha bisa se preparava para contar mais uma de suas histórias. Ada já se ajeitava também pra traduzir pra mim a história no mesmo tom da vó, como sempre fazia.

A Ada antes de chegar junto e se sentar perto de nós, mexeu na lenha do fogão de barro. Enquanto vovó contava sua história que depois seria nossa, o som dos toquinhos da madeira estalavam como se acompanhassem o enredo assustador que eu iria ouvir.

O fogo, atento, escutava a memória da bisa. As gentes-fumaça envolviam todos os aposentos da casa que, apesar de ter divisórias nos quartos, parecia uma grande e tradicional maloca. As gentes-fumaça criaram um cenário de suspense à história contada pela minha velha matriarca.

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A história a seguir aconteceu com a nossa família.

Um dia um homem tentou cortejar a mulher mais bonita da comunidade. Ela não quis. Ela amava seu marido. Não queria namorar na roça com outro homem, não.

O homem ficou tão ressentido que recorreu à prática da feitiçaria. Numa noite de lua cheia, esse macuxês foi na floresta e procurou lugares onde a gente-onça, onde a gente-cobra, onde a gente-anta haviam dormido.

Ao encontrar vestígios dos repousos, o macuxês deitou-se em cada um dos lugares para vestir a pele dessas gentes não humanas, que no passado eram conhecidos como animais ancestrais da primeira humanidade.

Depois de vestido tomou a forma da onça, da cobra e da anta, e desejou que a mulher adoecesse. Ofertou a stekaton dela, a sua alma, aos omá:kon, os espíritos-seres do mundo intermediário, que são caçadores das almas de homens e mulheres macuxi.

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Contam os antigos que eles aparecem sob a forma de animais de caça ou na forma de humanos com unhas e cabelos muito longos e falas inarticuladas. Eles ensinam aos macuxês lições de morte. Só quem pode resgatar as stekaton deles são os xamãs com ações terapêuticas bem ritualizadas: os piatzán são iniciados desde cedo nos ritos de cura.

Ao terminar o feitiço, o macuxês vestiu novamente sua pele de homem e desapareceu no bananal. Desapareceu na floresta e nunca mais ninguém ouviu falar dele.

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A mãe era ainda criança quando a vó ficou doente. Aos poucos ela foi ficando fraca, e a mãe não sabia o que era, mas sabia que a vó estava morrendo. Os médicos já tinham desistido dela, eles só sabiam curar o corpo. Não sabiam que a doença da vó era doença de espírito.

A mãe viu todo o feitiço agonizar os últimos dias da vó, que, com uma dor profunda, resistiu à morte, por alguns dias. O feitiço lançado na vó era aquele que ia quebrando seus ossos aos pouquinhos, quebrando o corpo todo, tirando toda força de querer viver nesse mundo.

As forças da vó se esvaíram e ela rapidamente ficou presa à cama, último reduto de sua vida. A essa altura ninguém podia tocar naquela mulher, jovem e enferma, os tios e a mãe já não podiam pedir damurida, nem pedir ajuda com a roça, nem com as lições da vida.A vó não faria mais panela de barro.

Não sabemos onde está a alma da vó, se ficou presa com os omá:kon, ou se descansa em paz. Sem xamãs corremos o risco de não sabermos para onde vão nossos ancestrais.

A mãe se despediu da vó com um beijo na cabeça, a cabeça era o único lugar que o feitiço não tinha chegado, os cabelos macuxi têm a força de Makunaima.

Quando a bisavó terminou de contar a história do feitiço, eu vi a saudade subir na sua garganta e marejar os seus olhos idosos. Ela olhou pro lado, talvez procurando a alma da vó, talvez só sentindo saudade da filha que tinha partido há muito tempo.

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A mãe me contou uma vez só, quando eu era criança, da despedida dela e da vó, de seu último beijo.

Mais tarde eu descobri que ali na região entre Roraima e Guiana, ali no que hoje é conhecido como fronteira entre Bonfim e Lethen, os feitiços são praticados com frequência, por isso é preciso sempre cantar e dançar pra mandar pra longe os espíritos ruins.

Já tarde da noite, as gentes-fumaça começaram a se retirar, assim como nós. Naquela noite eu vi a bisa sentir saudade da filha, lembrei da saudade longa que minha mãe sentia da sua, e eu senti saudade da minha, que estava nessa época nos afluentes do rio Madeira, bem longe de nós, como parece querer a vida.

O fogo aos poucos se despediu, deixando somente as cinzas no fogão de barro. A pouca luz que ele projetava se apagou, escurecendo de vez nossa maloca. Nós três nos recolhemos, e eu fui dormir pensando em todos os tipos de gentes não humanas, no que se transformavam durante a noite, quem eram e como se chamavam na língua de Makunaima.

Hoje, sinto saudades da bisa, que fez a passagem para o mundo dos ancestrais. De lá ela me espia, esperando o tempo certo de me encontrar em sonho e contar mais uma de suas histórias, insistindo pelo dia que também serei avó. Eu sempre acordo nessa parte do sonho. Toda colheita tem seu tempo.

Verdes verdes verdes

As pimentas dançam nos meus sonhos

Verdes vermelhas amarelas

Julie Dorrico nasceu nas terras da cachoeira pequena, mais conhecida como Guajará-Mirim. Mas foi às margens do Rio Madeira que cresceu ouvindo a mãe contar as memórias da família, dessas gentes que viviam lá quando acaba o Rio Amazonas. Um dia atravessaram esse rio gigante e foram conhecer os parentes em Boa Vista, em Bonfim (RR) e em Lethen (Guiana). Essa travessia, feita ainda na infância, foi, por meio da sua bisavó, o seu encontro com Makunaima e com o povo macuxi. Escreveu esse livro, objeto usado por não indígenas para contar por muitos séculos nossas histórias, para ocupar esse lugar de autoria, tão caro aos sujeitos indígenas. Também é doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. Saiba mais sobre a obra no [link].