lágrima tem gosto de sal
eu sei
mas pode ter de sangue
e de morte também
eles contam os meus dias
pelos meus vales
mas eu
pelos meus montes
e lá de cima vejo os que me contam
tão pequenos me contam
tão sedentos me contam
e se atolam no lodo dos meus vales
e se banham na água fedida dos meus vales
mas não saem dali
não querem ir
não sabem que já me elevei
não podem me ver
caboclo bardo
caboclo bardo
de língua-foice
e o sangue estancado correu
pelo fio do riso
um rio se fez à margem dos olhos, então
e me coagulou assim de pena
numa travessia silenciosa
que o teu mar viu passar
viu o teu riso meu rio derramar
e mesmo bardo
caboclo não quis me salvar
calafeto
esse buraco no teu olho pr’eu tapar
mas minha estopa não dá
passa um vento frio
soprador que secou o rio
e nenhuma lágrima borda a face
nenhum disfarce
que triste
olho morto agora não me vaza mais
vento que varreu o meu cais
comunhão
madrugada fria
sinos badalam o silêncio
minha capela tem as portas cerradas
e dentro uma santa
quer pecar comigo
quer sujar o altar
vou comungar com ela
natureza morta
o seio nu
exposto
agora peça-mármore em tua sala
não te saliva mais a boca
não te lasciva mais os olhos
e nem te desespera mais o cio
resta a palavra
| poemas do livro Grão (Macabéa Edições, 2019). |
Aline Martins, poeta, também escritora de contos e prosa, nasceu em Nova Friburgo, na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 1970. Em 1992, mudou-se para a cidade carioca, onde cursou a Faculdade de Direito e estabeleceu-se definitivamente.
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