Procurava o papel. O professor lhe escrevera dois dias antes, no corredor, quando visitou o cursinho para agradecer pelas provas difíceis. Apalpou os seis bolsos da bermuda até que o retirasse do meio do livro que levava. “Pegue o 4.82, desça na frente do Açougue do Massa e lá pegue o 1.19. Passa de vinte em vinte minutos. Para na frente do shopping.” Volte de táxi, adicionou verbalmente. Era talvez a oitava vez que olhava para os rabiscos a caneta. Guardou-os, deixou dinheiro no balcão da padaria e foi.
A entrevista fora rápida; o emprego, conseguido. Você vem aqui, bota o filme, aperta o botão, olha bem essa tabela aqui dos protocolos, sincroniza tudo direitinho. Não tem mais muito segredo com essa projeção digital, é só deixar o negócio rolando. Lembrava-se das palavras do gerente que atendia por um sobrenome de cabo da PM. Quando sair, apaga a luz. Se o pessoal começar a gritar, é porque tem alguma coisa errada. Essa salinha aqui tem luz e isolamento suficientes para você ficar estudando. O que é que você faz na faculdade, história? Ajuda. A gente projeta muita coisa legal, e vai que dá para fazer algum trabalho sobre um dos filmes daqui. É possível, sempre, claro. Só fica com o ouvido esperto, porque de vez em quando eles chiam. Aí é só me chamar e a gente dá uma cortesia e manda eles virem outro dia. Como não tem outro cinema decente na cidade, eles voltam. Reclamam, é verdade. Mas voltam.
O Açougue do Massa tinha cheiro de churrasquinho de gato feito com carne de cachorro. Ao lado dele, um sebo que estampava revistas pornô cobertas por tarjas pretas muito malfeitas. No ponto, dois homens esperavam para entrar e pregar a salvação das drogas vendendo uns cartõezinhos de palhaço, um terceiro tinha pipoca água refrigerante e bacon, e sete pessoas esperavam o urro das portas do seu número se abrindo. 3.24, 5.13, 2.76, 2.75, e ela pensava que tinha se passado sete minutos. Olhou para o papel mais uma vez, para se certificar do número 1.19, e ao pegar sentiu um roçar nas suas costas. Levou a mão até a caneta tinteiro que trazia no bolso esquerdo, mas era só uma mulher com uma bolsa na mão e uma criança na outra. O ponto ia se esvaziando, doze, treze, quinze minutos. Ele disse vinte, pensava, e eu preciso que dê certo nesse cinema. O cheiro dos cachorros assados se misturava com o dos ônibus, o da criança cagada do lado e o dos pacotes de salgadinho de bacon. Passa logo, passa logo. 1.19. O número fez a curva, se projetou, aumentou. Ao contrário do 4.82, aquele estava quase vazio, e ela se sentou rapidamente na única poltrona única. Não sabia se era pior virem de pé ou sentados ao seu lado, mas preferiu assim. Botava a mochila no colo e fim de papo. Faltava pouco. Respirou e olhou o ponto.
Agora é só passar com o chefe para acertar, moça. Boa sorte. O pessoal é gente fina aqui. Ele disse. A porta entreaberta, o cheiro do desodorante velho. Não era a primeira vez. O primeiro era simpático, legal. Agora, ela tinha que entrar. Pagar a kitnet, pagar a padaria, continuar estudando. Continuar indo embora. Foi recebida por K., que lhe pediu que sentasse e lhe explicou os ordenados. Registro, um pouco mais que o salário mínimo, tá? Não tem benefício quase, e o vale não dá para quase nada, mas já é um começo. Ela olhava, atônita, o contrato. Para não olhar a cara. Olhara desde o primeiro momento para a escrivaninha. Não ouvira a voz. Era bom, era só o necessário. Não podia colocar tudo a perder. Meu Deus, não coloca tudo a perder dessa vez. Levantou os olhos, e viu — e respirou — os seios de K.
Foi só quando o motorista desceu, gritando “uma coxinha”, que começou a sentir medo. Olhou fixamente pela janela, na direção do ponto, para não ver. Não sabia o que era pior, o ônibus lotado ou vazio. Contou os segundos. Não se atreveria a abrir, nem por um segundo, o livro. Não até que o ônibus estivesse em movimento, com as luzes acesas. De relance, teve a impressão de ver seu professor do cursinho passar em algum lugar. Impressão. Viu o motorista voltar, a boca suja com fiapos de frango, e fechar as portas. O abdome finalmente liberou a tensão. Olhou para fora, e então viu. Dois homens se acercavam da menina que, agora, sozinha, esperava no ponto. Tentou trocar olhares com ela. O ônibus seguiu.
O papel do professor era, ainda, um amuleto. Não pensou muito quando o colocou ao lado do aparelho projetor, nem quando, de propósito, retardou a projeção. A impressão que dava era de que o filme estava sendo carregado por streaming, e de que alguns momentos eram em câmera lenta. O público era basicamente masculino — embora houvesse mulheres — e era também basicamente chato. Começou a gritaria, que ela já conhecia há algumas semanas. Ouviu o gerente com nome de cabo da PM e também K. se mexendo em algum lugar, e começou a ouvir seus passos fortes. Era a única sessão daquele filme que parecia lotada, talvez porque fosse quarta-feira de cinzas. O ator acabara de ganhar o Oscar, e tinha acusações de abuso. Tinha que ser naquele filme, com aquele ator e naquela sessão. K. logo viria. Sentiu saudade do cinema de sua infância, o Kino. Riu, e precisou disfarçar o riso. Os espectadores eram todos muito impacientes. Logo começaram a se levantar. Agora, ela distribuía, com K. e o gerente, as cortesias. Mas os espectadores iam embora. Então, ela pegou seu papelzinho, seu amuleto. Com o número 1.19 grifado. “Minha cortesia, moça”, diz a voz, que ela não ouve. “A cortesia? Moça, a cortesia? Moça?” E então se vira. E então vê, no escuro, brava, a mocinha do ponto de ônibus.
Fábio Mariano mora em Campinas-SP e é autor de O Gelo dos Destróieres (contos, 2018) e Habsburgo (novela, 2019).