Você pode ouvir a música de Noel Rosa na voz de Zeca Pagodinho em que este conto foi inspirado no [link].
Tudo começou porque nada começava: nem os pelos, nem centímetros a mais, nenhum dos sinais esperados de masculinidade amadurecia no corpo magro. Nos shorts apertados da época, onde amigos de praia exibiam uma virilidade distraída, era evidente, nele, a criancice sem volume.
Como um herói, superou por conta própria a inimizade do destino: um enchimento de meias grossas, enroladas, passou a ocupar, no short, o lugar em que falhavam os hormônios. Cedo, abdicou do futebol, por medo de que, em alguma jogada brusca, lhe caíssem os colhões postiços, de algodão e poliéster.
Deixou os esportes, mas aprendeu a inflar os pulmões, com roupas de tecidos grossos, e sustentar, com o fôlego, uma robustez que não tinha. Empinava-se, controlava a respiração e andava como um lorde atlético, confiante, até tagarela, parecia mais velho. Talvez pelo esforço de carregar uma idade que não era dele, sentia uma preguiça danada.
Horas na cama, em silêncio, lia muito, e debatia, com o travesseiro, planos ambiciosos para enfrentar a indiferença do mundo. Podia passar um ano sem se aproximar da praia, do outro lado do túnel, marulhando em Copacabana. E ambicionava, muito. Cobiçava as mulheres, principalmente.
Seguia com os olhos, pelas ruas do Centro, a vendedora da loja de roupas; a cobradora do ônibus 433, que parava na Praça XV; a executiva que atravessou a rua do Comércio, sem notá-lo, e entrou elegante no edifício da Bolsa de Valores; a moça da portaria no número 9 da rua Candelária. Imaginava como seria levar à praia a ruiva com que cruzou uma vez na rua Sete de Setembro ou a secretária vista rapidamente numa breve passagem pelo Instituto de Educação, costurava fantasias com as dezenas de meninas do Instituto…
Mas a alma cobiçosa de Clayton era sabotada pelo corpo: quando, afinal, pôde dispensar a meia-enchimento da infância, espinhas tomaram-lhe a pele.
Em toda a adolescência, experimentou cremes, banhos, dietas. Por pouco tempo, tentou, na academia, expulsar a acne com exercícios entre esteiras, roldanas e pesos de ferro.
Por pouquíssimo tempo. Um leve enjoo lhe feria o estômago ao pensar em ser visto com roupas de ginástica. Não tinha paciência para movimentos repetitivos.
“Não tenho saco”, dizia, muito à vontade com a metáfora, que, no passado, o perturbava.
De peito estufado sob um terno, camiseta, blusa de malha e camisa de brim, tinha ânimo de frequentar as gafieiras, onde, suando, exercitava pulmões e panturrilhas conduzindo as moças que se deixassem levar. Passou de garoto a homem frequentando, ereto e almofadado, botecos e certos lugares na Lapa. Descobriu que, em troca de modesta e merecida recompensa em dinheiro, havia quem não só aceitasse ser levada para dançar como também lhe vendesse — barato, até — noitadas amorosas. No escuro, demorava pouco em se livrar das roupas e meter-se entre lençóis, como um gato magro e libidinoso.
Não era negócio, era romance; fazia poesia às parceiras. “O vil metal atrai as joias mais fugidias, sabia?”
Algumas faziam careta.
Mais que a leitura e um vocabulário antigo, valia o dinheiro, que gastava fartamente com os prazeres a emagrecer ainda mais o corpo miúdo.
“Economia sempre acaba em porcaria”, dizia, o lábio fino e meio torto sorrindo com o sabor da frase roubada de outro boêmio.
Era mais procurado pelos agiotas que por mulheres interesseiras. Administrava o assédio como financista amador, xingando-os sempre pelas costas; na falta de dinheiro investia em preconceito: o credor que o perturbava era “o judeu”, “o turco”, às vezes até “o armênio” — ainda que o dinheiro cobrado tivesse origem em algum comerciante de traços asiáticos.
Com as namoradas, não discriminava; apaixonava-se, em várias formas e cores. Não dava exclusividade a nenhuma, sabia que também tinha limites nas exigências.
“Estou cismado com a Maria…”
“Mas… você acha que ela…??”
“Não acho nada, estou cada vez mais perdido.”
“E…?”
“E como dizia o outro, a paixão é dor para o crânio, não para o coração. Me passa a cerveja.”
Havia, sim, algumas paixões dolorosas. Mas, enxaqueca séria eram os agiotas que financiavam as bebidas, os amores e as apostas em jogos de azar.
“Salve Clayton, quanta saudade!”
“Mas, nos vimos anteontem, esqueceu?”
“Saudade daquele dinheiro que te emprestei; há quanto tempo não dá as caras!”
Piadas velhas, argumentos batidos, os cobradores não tinha originalidade; e ainda prometiam tragédia. Com cinco anos de trânsito pela Lapa, Clayton percebeu que já não podia mais afastar credores prometendo que pagaria quando pudesse, se a loteria permitisse, se a polícia quisesse — desculpa emprestada de outro dos sócios de bebida e gafieira, que devia ter roubado de alguém.
Precisava botar de lado seu instinto de nobreza (ou de parasita, não há muita diferença nesses comportamentos instintivos).
Resolveu buscar emprego. Não foi difícil encontrar um, quando desistiu de pedir aos conhecidos uma colocação em alguma empresa privada. As leituras que não serviam para conquistar mulheres lhe facilitaram boas notas em um concurso público.
Mas, empossado na engrenagem burocrática, o salário de técnico administrativo de nível médio foi insuficiente para pedir alforria aos agiotas, a quem estavam amarrados o sexo e outras alegrias. Confiava resolver esse problema. Só não sabia como.
“Sou pobre em dinheiro, mas rico em ideias”, repetia Clayton, um pouco para si mesmo. A frase, copiava do mesmo amigo de farra que lhe dera desculpas para nunca economizar, mas os meses que se seguiram foram pobres em resultados.
Malsucedido, ouvia, miserável e interessado, histórias de companheiros de boteco, sobre mulheres apaixonadas que, em vez de despesas, davam renda. Aparentemente, estava nos músculos vistosos dos fanfarrões o poder de atração masculina que não tinha.
Os exercícios respiratórios e os cuidados de vestuário, o desembaraço, a habilidade na gafieira, todos os ativos de seu patrimônio espiritual não valiam. O caso não era de fortaleza de caráter; era de robustez visível, pujante, tônus, hipertrofia, força física.
Contaminado estava por esse desejo de potência, quando, no Antiquário da Gema, a gafieira preferida, entre uma dose de cachaça e dois copos de cerveja, após um prato de linguiças, dançando com uma senhorinha robusta chamada Adelaide, mais conhecida como Marli, Clayton teve, finalmente, uma ideia de como livrar-se da angústia que passara a ser sua companheira de copo.
Era noite de quinta-feira, quando a densa resistência dos seios abundantes colados a seu peito angustiado lhe trouxe uma epifania. Não era a primeira vez que notava, ao dançar na gafieira, uma densidade um tanto artificial ao encostar seu tórax empinado nos peitos de alguém; mas, conversando com a companheira de dança, lembrou-se de que o artifício não era privilégio das mulheres.
“Doeu muito?”
“Doeu nada, bobo; te dão anestesia antes de fazer o implante”.
Era mentira, dores incômodas haviam perturbado alguns dias de pós-operatório; mas Marli achava deselegante revelar as dores e desconfortos comuns à vida das mulheres belas.
O fim de semana foi dedicado à intensa pesquisa sobre o tema, entre amigas e amigos da fauna boêmia. E, três quintas-feiras depois, Clayton viu-se na horizontal, em uma cama cirúrgica, o peito liso decorado com marcas tracejadas na extensão do músculo peitoral maior, num desenho com dezessete centímetros de distância entre o ponto mais baixo e o mais próximo do ombro.
O médico, recomendado após uma rodada de consultas à rede de relações formada por ele em tardes e noites de exploração da selva noturna do Rio de Janeiro, havia lhe mostrado já na sala de operação a bolsa de silicone almofadada, com quinze centímetros de extensão, que lhe seria incorporada, dando-lhe um volume de halterofilista amador.
“Esse troço não rasga?”, havia perguntado o paciente, apontando o singelo e maleável peito artificial.
“Não tem chance. Isso é material europeu”, tranquilizou o doutor, sopesando com a mão segura o volume translúcido e gelatinoso.
Amparado pela escuridão da anestesia exigida por ele, Clayton dormia quando o médico inseriu, nas marcas pontilhadas, a agulha grossa por onde injetou um líquido destinado a facilitar o trabalho de descolar seus músculos de sua cama óssea, para, entre carne e esqueleto, meter o pacote de silicone. Um corte seguro na axila abriu na pele de Clayton uma fenda avermelhada, uma boca sem dentes, de lábios finíssimos e gengivas amarelentas de gordura encaroçada, logo arregaçada para os lados por largas pinças metálicas e penetrada suavemente pelo cirurgião com uma espécie de tesoura de bico encurvado, os dedos enluvados de borracha e uma gaze enfiados também para separar cuidadosamente os tecidos, de forma a abrir um buraco por onde meter, em seguida, o acréscimo artificial nos peitos do herói.
O dedo enluvado do médico enfiou-se totalmente na cavidade mole e indefesa rompida no peito de Clayton, e se mexeu lá dentro, um volume móvel, visível e decidido sob a pele, testando os limites da incisão cirúrgica. Pelo buraco aberto, um outro instrumento, como uma colher de metal brilhante, completou a tarefa de descolar músculos e outros tecidos, lacerando Clayton como a um frango inerte em que se abrisse uma enorme ferida sem sangue.
De olhos fechados, rosto sereno, o herói não moveu uma fibra muscular no rosto enquanto, pela abertura criada, o médico lhe introduzia no corpo a prótese almofadada, de cor ligeiramente leitosa, apoiando o dedo indicador esquerdo para criar uma pequena dobra na bolsa de silicone, e usando o direito para conduzir o pacotinho espremido corpo adentro, empurrando o volume pela abertura estreita. Uma vez colocada sob o músculo, a mama artificial foi acomodada com uma precisa massagem das duas mãos do doutor por cima do peito de Clayton, até encaixar o material no lugar marcado.
Um bem definido peitoral de atleta passou a luzir onde antes havia o tórax de um frangote. Em menos de uma hora, o médico lavava as mãos, assoviando. Intervenções semelhantes deram a Clayton um abdômen definido, novos braços e antebraços de grande primata civilizado.
As primeiras semanas com o novo corpo foram dolorosas. Clayton teve de usar uma camiseta elástica e evitar movimentos amplos nos braços. Aprendeu a valorizar pequenos gestos. Demorou um pouco até passar o medo pânico de deslocar o novo complemento corporal, em algum movimento brusco.
De peito novo, ele foi à luta. Teve alguns sucessos amorosos, mas desidratou-se, pouco a pouco, a esperança de pagar a dívida contraída para a operação com dinheiro generoso das amantes, que não veio nas medidas das necessidades.
E, por elas, as necessidades, perdeu o controle. Acreditou ter a força que só existia nos olhares impressionados, das moças e dos turistas na praia que voltou a frequentar para exibir a boa forma.
Ameaçou briga, quis rasgar os contratos com os agiotas. Com o silicone, e o desespero das finanças em crise, viu implantada na alma uma ferocidade sobre-humana, que desconhecia.
Para surpresa até dele mesmo, cercado um dia por emissários violentos de um dos credores, ao sair de um bar que já ia fechar, em um canto mais escuro dos Arcos da Lapa, partiu de peito aberto para enfrentar os gorilas.
Aos gritos, bradava insultos, a face vermelha.
E veio aquele soco.
Sergio Leo é escritor, jornalista, artista plástico. Prêmio Sesc de Literatura com o livro de contos Mentiras do Rio (Editora Record); publicou Ascensão e Queda do Império X, sobre o fiasco de Eike Batista (Editora Nova Fronteira), “Segundas Pessoas” (conto, e-galáxia) e contos nas revistas Pessoa, La Pecera e Flaubert. Foi curador da 3ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília, e jurado do concurso de contos Machado de Assis (Sesc/DF); participou de duas exposições coletivas no Museu Nacional de Brasília. Trabalhou no Valor Econômico, O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, TV Globo, Isto É Dinheiro e Isto É.