Passa por lá todos os dias. E todos os dias vê o bueiro. Inicialmente a tampa não encaixava direito. Sempre que algum carro cruzava a esquina o som metálico da dança da tampa a incomodava. Com o tempo, os carros evitavam o lugar, tornou-se um transtorno. Quando chovia, a tampa pulava e rios invadiam a pista, como cupim no fim da tarde quente de verão.
Depois da chuva só ficava a desgraceira. A sujeira. Atordoados, vizinhos colocavam cones para indicar que o lugar já não era rua, era breu, era o fim. Ainda assim, alguns carros metiam a roda; e o prejuízo em tempo, dinheiro e saúde mental era certo. Por sorte a tampa não foi roubada, destino de várias outras tampas de bueiro da cidade.
Um belo dia de sol o buraco estava fechado. A tampa não estava nem um milímetro para cá ou para lá. Milagre? No dia anterior, ela vira 13 homens uniformizados, 10 pás, um caminhão e uma máquina inédita. Tudo isso para domar o buraco que voltara. O buraco que sempre voltava. Alice, desconfiada, pediu para falar com o chefe.
— Vocês estão fechando o buraco?
— Sim.
— Tá feio, né?
— Sim.
Os 13 homens trabalharam por duas horas. O asfalto ficou brilhando, sem um buraquinho. O bueiro fechado. Mas Alice sabia que nem seria preciso esperar pelo verão. A chuva de outono já faria jorrar um rio, o rio levantaria a tampa, a tampa ficaria perigosa para todos que passam e o buraco retornaria.
— Mas alguém consertou o encanamento lá embaixo do bueiro, que faz com que ele transborde toda vez que chove um pouco mais?
— Nosso trabalho é fechar o buraco e é isso que vamos fazer. Com licença.
Rio, buraco, bueiro, asfalto arrumado, asfalto rompido… ah, Alice conhece tanto essa história. Tanto tempo fechando buraco para quê? De outra feita, ela vira, jogaram asfalto frio no buraco e ajeitaram com o tal rolo-compressor. Premido pelo rolo, o buraco ficou intimidado. Mas um mês depois já começava a se revelar, primeiro timidamente, depois em sua plenitude.
Ela também guarda um rio em sua alma, que não raro invade seu corpo. E ela fecha, sempre fecha. Com antibióticos, antidepressivos, anti-inflamatórios e mais tantos antis que achar na farmácia. E o buraco fecha, fica tudo bem, a chuva vem e.
— Mas, senhor, enquanto o encanamento que vai abaixo do bueiro não for consertado, você fecha hoje e na primeira chuva abre de novo.
— Olha, até pode ser. Mas isso é outro departamento. Nós cuidamos de fechar buraco.
Seu rio caudaloso começou com um lago tranquilo. As chuvas vieram sem avisar e as águas nunca mais foram calmas. Às vezes, represadas, mantinham-se na linha. O sol parecia um alento. Mas logo o céu cinzento fazia o rio explodir e a tampa do bueiro da alma ganhava os ares.
— Não seria melhor chamar alguém para consertar o problema das águas antes de mexer no buraco?
— Moça, o que você quer de mim? Não dá para deixar o buraco desse jeito, é perigoso, alguém pode cair.
Alice ainda testemunhou aquele buraco voltar algumas vezes. Na última, puseram uma cadeira dentro. Um senhor sentou e começou a ler um livro, como se estivesse na sala de casa. Tiraram foto, apareceu em rede social, em TV, em jornal.
Dois dias depois, dois homens estavam junto ao bueiro. Um entrou, o outro tratou de fornecer o que o primeiro pedia lá de dentro. Quando Alice passou novamente, na hora do almoço, eles estavam partindo.
— Vocês consertaram o vazamento?
— Sim, acho que fazia tempo que ninguém entrava aí.
Investigar os recônditos do corpo, descobrir o que transforma águas calmas em tsunami. Ah, como é difícil. Fazer isso em pleno ataque das águas é impossível. Alice esperou dias ensolarados e lá foi, escarafunchar a pele até encontrar em lugares que nem imaginava existir dentro de si os ventos que enfureciam as águas que abriam crateras que exigiam tantos antis. Falou com os ventos, pediu calma às águas, mas antes de fechar buraco deixou escorrerem bile, secreções, excrementos.
— Mas consertaram para sempre?
— Para sempre é muito tempo. Mas posso dizer que o problema que havia foi reparado. O bueiro fica em área de declive e quando chovia vinha tudo de uma vez, a força das águas era inclemente. Agora a água chegará de forma mais suave evitando novos danos.
Evitar novos danos. Por ora, bom demais.
Luciana Pinsky é, originalmente, jornalista, com passagem pela revista Época e pelo jornal Valor Econômico, entre outras publicações, e se enveredou para a ficção, especialmente para crônicas. Publicou um romance, Sujeito oculto e demais graças do amor (Editora Record). Atua, desde 2005, como editora de livros pela Contexto. E mantém seu blogue de textos ficcionais: http://lucianapinsky.blogspot.com/