Dava um certo ódio quando meu pai falava, com a maior naturalidade, para mim e para meu irmão, Uma pena que vocês não tiveram mãe. Posso não me lembrar de nada, mas eu tive mãe. Por dois anos, que seja, mas a sensação permaneceu, um calor, uma reminiscência mais física do que mental, uma espécie de rede protetora colada à pele que levarei para o resto da minha vida. E nós temos os vídeos, posso ver e sentir que era uma mãe afetuosa. Meu irmão bem pequeno, no colo, ela cuidando dele como criatura frágil e preciosa recém-gerada, ou brincando comigo, me fazendo cócegas e soprando em meu ouvido para eu dar risada.
Eu tive uma mãe pura como ninguém mais teve. É um saco ela não ter me acompanhado, não ter me visto crescer. Por outro lado, não tive a chance de decepcioná-la, ela se foi cedo, ficou livre de testemunhar todos os meus erros. Também permaneci pura enquanto ela viveu. Deve ser por isso que ainda carrego uma inocência no olhar, que sofrimento algum consegue apagar de todo. Este meu olhar resiste às intempéries, resiste à minha própria degradação, algo que permanece irredutível aos acontecimentos. Ao menos uma pequena parte de mim não se deforma pelo que me ocorre, escapa ao alcance de tudo que se corrompe.
Também não gosto de ser vista como uma coitada por ser órfã, apesar de admitir, com uma infelicidade, que tudo se passou mais devagar para mim por não ter tido esse exemplo maternal enquanto crescia. Meu grande esforço não pôde deixar de ter sido esse, o de ser menos seca, menos fatalista, e descobrir praticamente sozinha como me afeiçoar ao mundo, como receber alguma ternura e me humanizar. Crescer só com o pai. Muito mais difícil para mim, entender a dinâmica adulta entre um homem e uma mulher sem acompanhar desde o lar o que é um casal.
Nos meus momentos mais sombrios, é inevitável, imagino que meu pai, de alguma maneira que nem sequer vou saber com muita precisão, deve ter adoecido minha mãe. Eu sei que é um exagero, mas ainda pior é pensar que o amor filial de minha parte e do meu irmão não a salvaram. Eu me culpo também, e é o tipo da coisa que nem adianta falar com ninguém, porque só vão dizer que é besteira minha — e, na verdade, é mesmo uma besteira sem tamanho. Um peso que me acomete de vez em quando, mas depois de me torturar um pouco eu respiro fundo e me aprumo, sabendo que é um masoquismo dos mais desaconselháveis. Quando assisto aos vídeos, a sensação que prevalece é a de que ela tinha amor de sobra por mim e pelo meu irmão. Pelo meu pai, não tenho certeza. A tia Clara diz que meu pai ficou enciumado quando ela passou a dar mais atenção para os filhos do que para ele. Dizem que isso é comum, o pai preterido, com dificuldade para se conformar em ficar para segundo plano. Vez em quando parece ter algo de mórbido no velho, que drena as energias de quem fica muito perto dele. Na verdade, o que me incomoda é ele falar muito pouco, quase nada, sobre a mãe, e eu nunca sei se é por a dor ser grande demais e jamais ter se fechado ou se porque ele já não tinha amor por ela nem quando estava viva, quando menos por uma esposa morta.
Este texto não se dirige a ninguém aqui da terra, mas pode ser que do além possam nos observar, que minha mãe esteja bem aqui, ao meu ombro, acompanhando cada palavra que aparece na tela do computador. Como é que vou saber, se não morri? O que não me convence é o Deus moralista, não consigo levar a sério a ideia de um Deus barbudo e onisciente que tem a manha de criar um universo inteiro e, depois dessa obra tão vasta e complexa, só se interessa pela mixaria de saber se você vai se casar virgem, se masturbar, falar palavrão ou beijar gente do mesmo sexo. Também tem gente que acha que Deus é bondoso, que ele tirou minha mãe de mim aos dois anos de idade porque escreve certo por linhas tortas. De linhas tortas já me bastam as que estou digitando agora. Ao menos tenho a humildade de dizer que não faço ideia do que acontece depois da morte. Acho desastrosa a prepotência dos que julgam que você vai para o inferno se não agir exatamente como querem, mas também acho o materialismo convicto uma posição acomodada. Quando foi que a ciência provou que não existe vida após a morte? Pode até ser que exista uma espécie de “Deus”, mas provavelmente muito diferente do que a imaginação humana concebeu até agora. Acho que exige maior caráter ser agnóstica do que ser ateia, porque a gente vive com a dúvida em aberto. Até o materialismo é uma certeza apaziguadora, porque põe tudo nos eixos, torna o mundo previsível e explicável.
Dito isto, eu me sinto bem ridícula falando diretamente para ela, mas lá vou eu. Mãe, desculpa por essas páginas confusas. Foi só pensar em você pra minha escrita ficar toda em ziguezague, indo e voltando, hesitante como eu sou quando não sei o que há a um palmo do meu nariz, seja em relação a esta vida ou à outra. Mãe, para mim você é principalmente um conceito, de bondade e de pureza, que eu carrego sempre dentro de mim, mas confesso que não penso em você tanto quanto deveria ou poderia. Se você de algum jeito me observa, já deve desconfiar disso, que eu sou inconstante, que eu sou volúvel, que eu erro muito. Eu gostaria que você tivesse ajudado a guiar meus passos, me aconselhado, me irritado um pouco, até mesmo brigado comigo. Você aí, no além… eu estou falando para você, mas é melhor ser franca e dizer que estou me dirigindo a você como uma hipótese.
No fim das contas, é preferível me considerar desgarrada de você, e eu também prefiro pensar que a culpa pelos meus atos é toda minha, que você não falhou como mãe. Triste que minha fé seja fraca e interesseira, que eu só me ponha a imaginar que você está ao meu lado me escutando nos meus momentos de desespero. Estou sem pistas, mal sei para que lado virar. Eu não tenho a menor ideia de como é a logística aí do além-túmulo, mas se puder me mandar algum sinal, se puder me ajudar a fazer minhas escolhas, aproveite agora, quando estou mais vulnerável do que meu normal, para me fazer prestar atenção. Nem depois de morta eu te dou descanso, não é, mãezinha? O mundo dos vivos é um caos, sorte sua não pertencer mais a isto aqui. A qualquer momento, portanto, um sinal. No fundo eu quero, eu quero muito, mudar, só não encontro forças, encorajamento. E eu queria, sim, a minha mãe, quem não quer?
Ivan Hegen nasceu em São Paulo, em 1980. Formou-se em Artes Plásticas e tem mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Publicou os livros A Grande Incógnita (Annablume, contos, 2005), Será (Ragnarok, romance, 2007), Puro Enquanto, (E Editorial, romance, 2009) e Rock Book — Contos da Era da Guitarra (org., Prumo, 2011), A Lâmina que Fere Chronos (Prumo, 2013) e Clarice Lispector e as Fronteiras da Linguagem (Benjamin, 2016), além de artigos para diversos sites e revistas sobre estética e política.