Como um vento inesperado as janelas escancara
anunciando a tempestade
chegaste abrupto incendiando toda a Casa:
queimando as luzes as fiações inteiras
e instaurando um outro tempo —
sem relato sem passagem sem ponteiro
Guiado pela bússola dos intermináveis pesadelos
a desorientar a rosa dos ventos:
mãos do futuro encenando o lutuoso passado
— este mármore profanado no meu peito frágil —
Destruíste a imagem fossilizada de Deus
e fundaste um novo Olimpo de carnes raríssimas
e pesares abissais
(os gritos vagam pelo firmamento
enlaçando a terra de hinos cáusticos, libertos)
Chegaste desnorteando as horas e apontando
estradas incorpóreas — desmarcadas de afeto
cosidas por cascalhos afiados
e cruéis
Arrancaste das vísceras o mitigado vazio
soletrando-o de silêncio e escaras amotinadas —
murmúrio perfeito da avidez divina.
a trinca da porta estreita
Sempre desconfiei
na vida não teria guarida
Minha mão nunca estendi
a qualquer punhado de terra
Ensinaram-me que não pertenço
meu chão não é neste mundo
há algo melhor me esperando
do outro lado do limbo
Sempre desconfiei
amar a estadia na Terra
tecendo tempo e memória
no solo que nunca foi meu
Proibido o riso, proibido o gozo
Sonhar desbravando a sorte
ato bárbaro e perigoso
Entre o choro e a alegria
fiz as malas e cruzei a estrada
No olhar de contínua despedida
permanece algo que assombra
a voz obstinada e perversa:
nada é seu, por que continua?
Perambulo acumulando pedaços
das coisas que imantam a morte
do trabalho só tenho o asco
do amor só tenho o nome
a maioria é minha inimiga
são linhas de frente os meus dias
Desde que nasci, morro bem rapidamente
mas a coragem do fuzil no peito
é devagar o suficiente.
adeus à ilha
Talvez seja o fato
estar todo dia entre arquivos
que me deu este hábito:
sentir de antemão a seiva
derramada dos galhos nas folhas
banhando a cidade inteira
Talvez seja a sorte
morrer oito dias por hora
na Justiça
que anoiteceu minha escrita
E agora sigo assim
de lado, fugindo dos meios
termos — delírios — de produção
a desenhar paisagens inteiras
em mim —
colhidas dos dias cheios
na Avenida central
Por tudo, talvez
aceno o adeus diário ao arquivo
— tão entristecido! —
e esvazio o calor das cadeiras
— sem solidão…
Ignoro os papéis timbrados —
na mesa copulam
(outro tom, outra nota…)
Recolho a morte e sigo
morrendo bem longe da repartição
Meus olhos na rua escavam
outros olhos outras mortes
e vou rindo orgulhosa
do dramático enterro — os dedos
cumprimentam a fissura
banhada do suor das mãos
Vez em quando surpreendo-me
de haver amansado os gritos
e da amargura ganhar o céu
dentro de bolinhas de sabão.
casulo em chamas
Por que caminhas
com o olhar
voltado pra trás, mulher?
As paisagens sombrias
são passagens secretas
que terás de aprender
O progresso embalado
no papel de pão
e anotado na caderneta
de papel
é um estatuto falido
que ampara a angústia
do futuro
Contar as notas no final
do mês
é um exercício penoso
que o mundo te impõe
e que aceitas, resiliente
alinhavada que estás
no costume ordinário
Te excedes
em obtuso sentir
Mitigas a fome
num corpo qualquer
Sacias a sede
no copo sujo
do bar da esquina
Arrancas violenta
o beijo molhado
de saliva ácida
do homem que te olha
teso e aflito
— o sexo lateja
no bolso da calça
manchada de fluido
de outras mulheres —
Saciam-se apressados
no beco escuro
do ponto de ônibus
Voltas pra casa
tonta e faminta
enquanto o sêmen
escorre da calcinha
— a parte molhada
dolorida anseia
o toque de veludo
do ator de cinema —
O buraco no estômago
cada dia mais profundo
perfura a razão
em tropeços contínuos
Obedeces ao mundo
com tamanha devoção —
o que ele te dará em troca
quando for tua hora?
A cesura dos dias
que emendas obstinada
serve de trapo
achincalhado
pra secar tuas lágrimas
Andas meio morta
pelas avenidas
sem nada entender
Olhas as placas
os sinais estrangeiros:
é proibido pertencer
Por que acordas, mulher?
Emenda a teus sonos
uns sonhos quaisquer:
fantasia ser gente
tem um querer
sobe no viaduto
podes o mundo beber
atira-te na noite
escura e enviesada
queima-te no calor dos dias
anuviados e impotentes:
porque a coragem
é a raiz mais forte
que vinga o presente.
| poemas do livro Esmeril (Editora Urutau, 2019), mais no [link]. |
Nayara C. P. Valle nasceu em Barra do Cuieté, Minas Gerais, um vale entre o rio e o mar. Formada em Letras-Português e pós-graduada em Jornalismo Cinematográfico. Funcionária pública, tia da Bel e feminista. Esmeril (Editora Urutau, 2019) é o seu livro de estreia.