larápio, de Laura Elizia Haubert

As coisas estavam sumindo lá de casa, mas ninguém falava sobre isso. Também não falávamos sobre quem roubava. Fingíamos que não víamos os vasos chineses, as fitas do Purple Rain e a televisão irem embora, de uma única vez, na sacola preta que meu irmão carregava sem discrição.

Era um domingo. Meus pais estavam na cozinha, e por isso ele teve que roubar da sala. Eu estava no quarto protegendo minhas posses segurando um cabo de vassoura, resoluta. Essa coragem vinha não sei de onde, porque eu não costumava tê-la nas veias. Hoje, quando penso nisso, acho que ela veio do ódio; ainda que ódio seja uma palavra forte, e que mamãe não gostasse que eu a pronunciasse, sentia-o vigoroso.

“Você não pode odiar seu irmão!”, ela me disse.

Levei só um instante para desistir da resposta, porque já estava odiando. Pronto. Não havia uma saída para fazer o retorno, não havia placas nem acostamento nessa estrada empoeirada que era o meu ódio. Comecei a odiar meu irmão duas semanas antes de segurar o cabo de vassoura no quarto à sua espera, naquele domingo.

Comecei a abominá-lo em um sábado à noite. Ele apareceu com olhos vazios, tão vazios que me apavorei. Quis bater nele, mas foi ele quem me bateu no final das contas. Apanhei o suficiente para ficar no hospital por três dias e duas noites; quando recebi alta estava ainda com manchas roxas pelo corpo. Meu irmão não queria me bater, mamãe tinha dito com olhos inchados de tanto lacrimejar. “Ele só queria dinheiro, nem sabia quem você era.” Essa constatação doeu mais do que a surra. Ele podia estar louco. A gente briga, apanha, não devia, mas acontece. Agora, esquecer um irmão é coisa que não se faz.

Meu pai era terapeuta. Um homem paciente. Demais, até. Entrou no quarto do hospital assim que mamãe saiu, sentou-se plácido e perguntou se eu queria conversar a respeito. Puta merda. É claro que eu não queria. Eu mal podia falar de tão inchados que estavam meus lábios. Eu queria bater naquele desgraçado, só que ia apanhar de novo. Então me contentei em resmungar um não e ficar calada. Papai ficava desgostoso se ouvia palavrões saírem dos meus lábios, então disse todos eles apenas em minha mente.

Meu irmão ficou sem aparecer depois disso. E assim como ele, nós fingíamos que nada tinha acontecido. A história é que eu caíra, sabe Deus onde. Só que eu sabia que papai saía para procurá-lo toda noite. Estava sempre ansioso, querendo saber se faltava algo do mercadinho.

A verdade é que a cidade era grande, e os viciados se espalhavam por suas sendas como se conhecessem seus segredos. Só que papai nunca o encontrou. Sorte dele. De fato, meu irmão sempre foi um garoto de sorte, ganhava todas as rifas que comprava, mesmo quando comprava um único número. Eu podia comprar todo um talão de rifas e nunca ganhava nada. Talvez nem se fosse a única pessoa concorrendo.

Depois disso, mamãe chorava mais alto quando chorava escondida. Às vezes no banheiro, às vezes na cozinha. Eu sabia que ele nunca quis magoá-la. Ele só não conseguia mais se controlar. Seu corpo não era seu, sua mente estava em outro lugar. Ao menos era o que eu queria acreditar, assim ficava mais fácil perdoar os acontecimentos dos últimos meses. E eram muitos. Se eu pudesse transformá-los em pingentes, eles encheriam um pote rapidamente.

Se me lembro bem, a primeira coisa a sumir foram as joias de mamãe. Um clássico. Pena, elas não eram muitas: resumiam-se a um pingente de ouro em forma de coração e um anel com um diamante solitário que recebera de herança de sua mãe, e um dia seria meu. Bom, não mais. Agora, provavelmente, estava no dedo da namorada do traficante. Depois desse roubo, mamãe chorou na nossa frente, se perguntando se ao menos ele obtivera um bom preço por elas, como se isso importasse.

Por fim, creio que ele não conseguiu um bom preço, já que não demorou pra voltar. Talheres. Vasos. Eletrônicos. Até roupas. O que estivesse à vista quando meu irmão entrava em casa terminava perdido lá no complexo da Maré. E já não importava quanto papai pagara por esses objetos, eles valiam menos, muito menos, valiam um pouco de pó, um segundo de excitação, um outro hype.

No começo, acreditava que ele sentia remorso. Digo isso pelo modo com que seus olhos escorriam para o canto quando encontravam os nossos. Depois da surra, já não creio mais. Deixei minha fé no chão junto com o sangue que suas mãos arrancaram. Papai ainda não consegue falar sobre isso, ele se refere ao acontecido pelo termo “acidente”. Não foi um acidente. Acidente é andar na rua e ser atingindo por algo aleatório, é derrubar a xícara de café, acidente é cocô de pomba cair no seu ombro enquanto se espera o ônibus no ponto.

Quando meus pais se dão conta que meu irmão está indo embora da sala com uma sacola cheia de pertences, eles não falam nada, suas mãos fecham a porta da cozinha, como se uma brisa os houvesse incomodado. Mamãe murmura uma prece. Ela sempre ora quando está com medo. Papai chama o porteiro pelo interfone para avisar que o filho não pode subir mais, não está autorizado.

Eu estava lá no quarto, pronta para a revanche. Meio atordoada, percebo que a revanche não vai acontecer. Meu irmão foi embora tão rápido que nos deixou ainda mais estarrecidos do que quando era violento. Não esperávamos essa discrição, essa ausência. Ele nos havia roubado com uma certa decência.

Desço para a sala, e há um buraco ali deixado pelas coisas que não existem mais, deixado pelo seu cheiro. Não falamos sobre isso também. Mamãe abre a porta da cozinha e avisa que o jantar está servido. Desta vez jantaríamos sem o barulho do Fantástico ao fundo. Não havia mais televisão. Porém, é claro, não falaríamos sobre nada disso. Nunca falávamos.

Laura Elizia Haubert é graduada e mestre em Filosofia pela PUC-SP. Participou de antologias de contos como As coisas que as mulheres escrevem, pela Desdêmona Editora, e também de revistas literárias como a Revista Ponto, do SESI-SP, e a Revista Subversa. Publicou em 2015 pela Editora Multifoco o livro Ode à Nossas Vidas Infames e em 2017 pela Editora Patuá o livro Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul. Publicará, ainda em 2019, pela Quintal Edições, o livro Memórias de uma vida pequena. Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.