tocata e fuga funestas, poema de Rodrigo Novaes de Almeida

Inspirado em TODESFUGE, de Paul Celan (1920-1970).

Um pingado nós bebemos toda manhã
e ao meio-dia e no fim da tarde.
Nós comemos um pão na chapa
e, quando conseguimos, um pastel ou um salgado.
Levantamos as paredes das nossas casas
e batemos laje.

O homem, ah! o homem
brinca com seus cães de caça
que não são como os nossos cães
vadios.

O homem, ah!, o homem
diverte-se com sua mulher,
que tem lobo no nome, e faz leis
para mandar nossa gente para a cova.

Um pingado nós bebemos toda manhã
e ao meio-dia e no fim da tarde.
O leite ralo e o pó de café sujo
não são os mesmos da mesa
do homem com a mulher
que tem lobo no nome.

Ele ordena aos seus cães de caça:
« Cavem fundo na terra.
Vamos enterrar ossos. »
O céu é cinza sobre o Brasil
enquanto o homem faz leis
para mandar nossa gente para a cova.

« Toquem o tambor da marcha marcial. »
Ele exige.
« Cantem ao deus que está acima de tudo.
Matem, matem. »
E assim é a dança,
a dança de destruição e morte.

O céu é cinza sobre o Brasil.

Um pingado nós bebemos toda manhã
e ao meio-dia e no fim da tarde.
O ouro negro foi entregue para estrangeiros.
A carne negra ficou para ser abatida.
« Cavem fundo na terra.
Extraiam o negro, enterrem o negro. »

O homem com a mulher que tem lobo no nome
brinca com seus cães de caça e deseja.
Destruição e morte
são a pedagogia final do Brasil.

São Paulo, 17 de outubro de 2019.

Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e editor. Fundador e editor-chefe da Revista Gueto e do selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores. É autor dos livros Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), finalista do Prêmio Jabuti, e A clareira e a cidade (Poesia, Editora Urutau, no prelo), entre outros.