sábado, de Natalia Timerman

rachaduras_natália timermannome: MAYKON ROMUALDO SEVERIANO DA SILVA
mãe: CRISTIANE SEVERIANO DA SILVA
pai: IGNORADO
nascimento: 10/02/1988
matrícula: 1.220.872

Lógico que era ele, quem duvida?, a gente já reconhece de longe, pelo passo, pelo andar, bandido que é bandido solta cheiro, aí chegou perto, pronto, aquelas tatuagens, pronto, confirmou, são anos de prática, dona, tava na cara, tem gente que tem cara de bandido mesmo e pronto, revistei e num deu outra, tava ali, um toletão desse tamanho, 50 gramas na pesagem, disseram, agora é muita cara de pau o sujeito achar que a gente é trouxa, que a Justiça é trouxa, a gente é a porta de entrada da Justiça, falou tá dito, é assim mesmo que tem que ser, ou você acha que a juíza vai acreditar mais no malandro que em nós?, aqui é anos de estudo, um salário a zelar, nada de outro mundo, né?, mas tem o garantido no fim do mês, quase tudo tem família, tudo na honestidade, criminoso são eles, já vem com cara de canalha, e mentem, mentem bem, viu?, se a senhora visse, num faz escola mas vai tudo pra escola da vida, é lá que aprendem o crime, a malandragem, tem que pagar por isso, é dever nosso, limpar a sociedade, cadeia é pra isso, oi?, e se não foi ele?, tá duvidando da minha palavra, dona?, olha lá, hein, eu num faltei o respeito com a senhora não, tô te dizendo, tava ali no bolso, se ele ia ser burro a esse ponto?, ué, mas foi, vou fazer o quê, tô só cumprindo o meu papel, não teve violência nem nada, tudo na medida, na medida certa, se a gente chega bonzinho também os cabra num respeita, tem que impor a autoridade, mas sem exagero, tudo dentro dos treinamentos, gritar faz parte, botar o cara de joelho é somente a técnica, vou fazer o que se o cara tava resistindo?, eu fui bonzinho, ele podia ter pego desacato, mas não quis sujar pra ele não, da próxima a dona vai ver aonde é que as coisas podem chegar.

Eu nunca passei por isso, por essa humilhação, era sábado, eu deito a cabeça de noite e passa o filme todo na minha cabeça, não durmo, não acredito, eu converso com os caras aí e eles dizem que tráfico é no mínimo cinco anos, eu volto pra cá e choro, eu não fiz nada, não era meu, quem acredita? Era sábado, eu tava com dinheiro da funilaria, te disse que tô aprendendo funilaria e pintura, né? Faz três meses, tô no EJA também, tava, eu tava, era sábado, eu tava com cinquenta reais, minha mãe disse pro policial que era meu o dinheiro, e ele, não, isso aí é de venda que eu sei, eu nunca passei por isso, eu tenho como provar, mas na audiência de custódia a juíza nem quis me escutar direito, tava comigo, pronto, é meu, foi assim. Era sábado, deixei minha namorada no ponto, às vezes eu durmo na casa dela mas nesse dia eu tava em casa, fui só deixar ela no ponto, abracei ela, beijei, despedi. Fui andando, 50 reais no bolso, não, 40, eu dei 10 reais pra ela, passei na padaria e comprei um saco de pão doce e um danone, fui comendo no caminho, aí eu fui comprar maconha, eu num sou santo, né? Sou usuário, usuário de maconha, mas o que eu faço eu assumo, eu nunca trafiquei, tem um ponto perto de casa, um ponto de droga, tava lá, já me avisaram da movimentação, uma vizinha disse que tinha polícia na área, aquele clima estranho, a gente num sabe como, por quê, mas tem alguma coisa estranha, quem sai pra fora fica pouco. Era sábado, o traficante chegou, eu queria cinco reais, ele disse pra eu segurar o bagulho que ia ver se tava tudo limpo, colocou no meu saco de pão doce, eu não vi, essa hora não, não era muito, só vi depois quando o policial pegou e jogou em cima do carro, eu fui ouvindo os passos e achei que era o cara voltando, mas era o polícia, dei bom dia, eu nunca fiz coisa errada, quer dizer, sou usuário, eu não achei que ele ia vir pra cima de mim, ele achou logo o bagulho, eu disse que não era meu, era do menino ali. Era sábado, a vizinha já foi chamando minha mãe, a cara dela, eu nunca fiz isso, as lágrimas escorrendo na cara dela, acho que ela achou que eu tinha feito sim, aí o polícia chutou minha perna por trás e eu caí de joelho, muita humilhação, chutou minha costela, veio outro e bateu mais, eu quieto, eu quieto, olhei pro lado quando alguém passou, era sábado, e me bateram mais, pra eu olhar pra baixo, as mãos pra trás, aí ele disse pra gente passar na minha casa pra pegar meu RG, de viatura, de viatura, eu nunca passei por isso, minha mãe vendo eu lá dentro, ela veio vindo atrás, chegamos antes, minha irmãzinha tava em casa, de 10 anos, eu disse, Rai, pega meu RG na bolsa da mãe. Ela chama Raiane, eu chamo ela assim, Eu num sei onde tá, a Rai disse, já tava assustada, eu naquela situação, que vergonha, mas como é que eu vou ter vergonha de alguma coisa que eu não fiz, mas tenho, como se eu tivesse feito, o polícia aí gritou, gritou com a voz alta, Como é que você não sabe onde tá a bolsa da sua mãe? Aí eu perdi a cabeça, xinguei mesmo, Cê tá louco?, num tá vendo que ela é só uma criança?, e se ela fosse tua filha?, e o polícia transtornou, disse que eu tava fudido, que ia dar desacato também, nisso minha mãe chegou, tava chorando, esfolegante, decepcionada, a decepção estampada na cara dela, eu nunca fiz nada disso, eu nunca passei por isso, mas aí na cara dela eu vi que podia ter sido eu, duvidei de mim, mas nem deu tempo, quando vi o RG já tava com o polícia e nós tava dentro da viatura. Era sábado. Ele e o outro na frente. Eu atrás.

| conto do livro Rachaduras (Editora Quelônio, 2019), com lançamento dia 29, terça-feira, em São Paulo [link do evento]. |

Natalia Timerman é médica psiquiatra pela Unifesp, mestre em psicologia pela USP e escritora. Cursou a pós-graduação em formação de escritores do Instituto Vera Cruz. Publicou Desterros — histórias de um hospital-prisão (Editora Elefante, 2017), acerca das vivências no hospital penitenciário onde trabalha desde 2012, em São Paulo.