seis poemas de Cecilia Furquim

coloque as frases na ordem correta usando a gramática

aprendi com meu
pai a desconfiar de
deus estou ficando velha troquei a
noite pelo
dia meu pai é uma
dor minha mãe é mal cuidada na
clínica de idosos barata o breque do meu
carro 2007 não
funcionou e bati num
uber que agora não
anda me
declarei culpada mas meu
seguro nega com base no
artigo 36 não consigo ler sem
óculos não consigo andar de
óculos nem
usar lentes multifocais

aprendi com meu
uber que agora não
funcionou e bati num
artigo 36 nao consigo ler sem
deus estou ficando velha troquei a
dor minha mãe é mal cuidada na
noite pelo
pai a desconfiar de
óculos não consigo andar de
dia meu pai é uma
clínica de idosos barata o breque do
seguro nega com base no
óculos nem
usar lentes multifocais
declarei culpada mas meu
carro 2007 não
anda me

cara

el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.
(Jorge Luis Borges)

a jovem era pequeno-burguesa
e achou o mundo muito pequeno
e buscou um mundo além do pequeno
não nasceu operária nem burguesa

mas os homens que eram da política
diziam: abaixo a vida operária

diziam: um viva à vida operária
os homens que eram contra a política

mas os burgueses que eram da arte
diziam: um viva à obra burguesa

diziam: abaixo a obra burguesa
os operários que eram da arte

e embora tenha lutado com eles,
os operários, não sendo operária

não foi aceita não sendo operária
ainda assim permaneceu com eles

e nem a uns nem a outros foi cara
solta e presa no fundo do espelho
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela a nossa própria cara

rapina

te roubei a epígrafe
como me roubaste a alegria

te roubei a dor
a confusão, a treva
como me roubaste o dia

roubei do teu relógio
as badaladas baixas
como me roubaste o sal

e carreguei junto
as tumbas, o pó, as cinzas
e as tenho na penumbra da sala

do teu papel alvo
cravado de negras palavras
pacientemente lapidadas
que acusam um fim

fiz um afoito avesso
em cinza turvo, raiva
e alvas letras
que tornam ao começo

e se teu roubo, assim consentido,
não é menos criminoso
que meu roubo ilícito

e se tua dor se apresenta sólida
a minha não é menos vasta
nem será menos coro, menos só, nada,

assim esparramada

ai

perdi, a um só tempo,
pai e país

distraída
ando, converso,
trabalho e dou risada

caída,
revejo, verso,
me atrapalho e calo

odisseu
sem ítaca e sem arca

penélope
sem amado e sem manto

homero
sem enredo e sem aedo

filha, exília,
sem país e sem pai

mão da mamãe

nas veias
que pulsam teias
corre o seu sangue
mangue meu

nele
caranguejos se esgueiram
em mormaço moroso

um bolero cadente
rói a pele
apela

e

flúmens azuis
movem-se
pelas veias

mendigando vida
espraiando
pequenos lumes

pelos flancos

desmaio

(enquanto você lê, pode ouvir a canção em https://soundcloud.com/cecilia-furquim/desmaio)

cuidado que eu sou
cuidado que eu

eu pairo, eu caio
sereno de maio
e na madrugada
meu bem não me deixa dormir

eu sou do meio

de maio das mães
das gordas cadeiras
de manhas e mamas leiteiras

severa me interno
na mágoa do rio
e muda de inverno
me planto só meia saída

sandália arrastada
e dália na sala
desfolha-me a malha voraz

mas que malcriada
criada da casa
na tortura sua eu suo

cuidado que eu sua
cuidado que eu

sereno de maio
ser nó e desmaio
e na madrugada
meu bem já me deixa dormir

Nota: “desmaio” é um poema escrito e musicado por Cecilia Furquim. Publicado no blog da autora em 2007 e gravado em junho de 2019, especialmente para o livro Mulheres salgadas; com arranjos, produção musical e violão de Carlinhos Antunes, baixo acústico, edição e mixagem de Ruy Barossi; trompete de Duca França e voz da autora.

Cecilia Furquim é professora de inglês para crianças e de português para refugiados. Pesquisa mulheres escritoras no doutorado em literatura brasileira na USP: Gilka Machado, Pagu, Ruth Guimarães. É poeta e tradutora de poesia. Lançou um livro de arte para crianças contendo dois poemas musicados em parceria com Beto Furquim, um de sua autoria e outro traduzido de Edward Lear, chamado A coruja, o gato e os filhotes (Melhoramentos, 2014). Alguns de seus poemas foram publicados em revistas e na antologia Um girassol nos seus cabelos — Poemas para Marielle Franco (Quintal Edições: Belo Horizonte, 2018). O seu primeiro livro de poesia para adultos, Mulheres salgadas, contendo cinquenta e poucos poemas, uma canção e sumiês de Lúcia Hiratsuka, aguarda publicação pela Urutau ainda este ano. Nele se debate com sua porção mulher, mãe, filha, ex-esposa, ex-namorada, amante, amiga, cidadã. Com a porção que lhe cabe e com a que cabe a outras mulheres também.