Jesus está voltando
de suas férias em Acapulco
Jesus está voltando
a falar em abdução
Jesus está voltando
com a formação original
de sua primeira banda de grindcore,
com a oficina de telepatia espontânea,
com a produção artesanal de pranchas de surf
Jesus está voltando
a deixar o cabelo crescer,
a distribuir bolinhas de gude feitas de argila,
a trabalhar como terapeuta do sono e do sonho
Jesus está voltando
a caminhar sem rumo,
a cozinhar deliciosas moquecas,
a cultivar manjericão, rúcula e coentro
Jesus está voltando
de uma temporada no Himalaia
de um inverno nas praias da Califórnia
de uma conversa com Harry Houdini
Jesus está voltando
pra casa dos pais
Jesus está voltando
a subir em árvores
a desenhar na areia
a dormir enquanto voa
Jesus está voltando
apesar de nunca ter ido embora
* * *
Charles Manson telefona todos os meses
para me dizer que o ar é deus e fumaça
é tudo que irriga os ossos do crânio
é triste que donas de casa tomem valium
e desconheçam os benefícios do lsd
contra a depressão e o tédio, fantasmas
procurando vídeos pornôs nas pupilas
de uma testemunha de jeová, fantasmas
procriando no abismo da pele, fantasmas
sampleando a tristeza de guaxinins
enfiados em gaiolas e expostos nas pontes
das cidades sufocadas no alumínio publicitário
um açougueiro dormindo em cima de uma tartaruga
ninho de parasitas no peito da promessa militar
sou um criminoso tirando cochilo, diz
sou um cafetão incompetente, diz
sou um obtuso ladrão de carros, diz
um gatuno de mão pesada que só busca
algo para fumar, uma guitarra
um bom lugar para cagar e vinagre
de maçã para os fungos nos pés
* * *
esse aí não diz coisa com coisa e vive
de mãos dadas com o silêncio dizendo
que o vento está visivelmente cansado
esse aí não diz coisa com coisa e uiva
e canta e dança e dá um nó na pança
depois joga xadrez sozinho na sarjeta
esse aí não diz coisa com coisa e vaza
entre carros, motos e corujas de plástico
antes que a polícia pule no seu pescoço
esse aí não diz coisa com coisa e vigia
os pombos comendo pipoca no asfalto
e os ratos lhe trazem um pouco de queijo
esse aí não diz coisa com coisa e visita
todas as árvores que restam na cidade
e carrega muitas folhas debaixo da língua
esse aí não diz coisa com coisa e vai
feito um vulto que valsa nas praças
no meio dos que não estão descalços
esse aí não diz coisa com coisa e vê
formigas de ferro bem no cocuruto
dos que se apressam e passam
esse aí não diz coisa com coisa e vadio
trabalha na alucinação das carnes
e consegue ser feliz ao meio-dia
* * *
hoje pela manhã um mendigo me salvou
com algumas baforadas e brasas
enquanto me dizia que
o gato é uma gota
de tigre
e que não há nada a pedir às deusas
nem desodorante, nem pizza
nem teto, nem saúde, nem dentes
nem viagens de ácido, nem travesseiros
projetados pela Nasa, nem pernas mecânicas
nem pastilhas para refrescar o hálito, nem pão
basta deixar os pés na poeira e fazer
a travessia
como um sabonete despreocupado com seu fim
deixando tudo cheiroso
* * *
enquanto a chuva diz
seus muitos nomes,
as pernas procuram
uma maneira inigualável
de reescrever uma e outra vez
a travessia sobre a terra
caminhar nos educa para o desaparecimento
e estas gotas dormem seus dias
em nossas cabeleiras
ainda é possível reconhecer os barulhos
específicos que as cabras fazem
quando estão comunicando
a presença da água?
mil cabras distribuem todos os dias milhões
de sementes em suas errâncias pelas veredas
Agora mesmo, neste poema, é possível
perceber uma planta que nasceu
no meio
dos dois olhos primatas
depois de trazida pela língua
de uma cabra
coloca as verdes folhas
no teu peito e as amamenta
enquanto a chuva canta
José Juva (Olinda, 1984). Mamífero, poeta, ensaísta. Visitante do paleolítico e ativista do movimento pelo teletransporte público. Jornalista, mestre e doutor em Teoria da Literatura. Publicou os livros Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva (2012), Vupa (2013), Breve Breu: escritos sobre literatura e cinema (2015) e Watsu (2016). Os cinco poemas aqui reunidos fazem parte do livro Da boca pra fora, ainda inédito.