Manhã de inverno.
Meus passos roçam nos passos das estações.
O céu é gaze cinza rasgada de azul
_____e o sabiá laranjeira escurece no telhado.
O esmalte do asfalto
_____se esfrega nos meus pulsos
_____como escamas de salmão.
Na esquina
_____a cascata de ouro e verdura
_____se enrosca na ferrugem do poste.
Da escória vertical
_____o rosto de mulher
_____é um túnel de luz.
(Através do silêncio
_____vejo beija-flores incandescentes
_____e sempre-vivas em combustão.)
Dias de tinta roxa na carcaça —
_____não basta olhar,
_____a vida quer tocar e ser tocada —
_____então os dedos fundos
_____no rosto de manteiga.
Rastejo em câmara lenta,
_____escavo com as unhas
_____o útero do labirinto.
* * *
Depois de uma vida, o casal desperta:
_____grão de sol gravidade zero,
_____a abelha adejou no café da manhã.
Saem de casa
_____com o sol zumbindo
_____nos bolsos, nas casas dos botões, nas dobras da blusa.
* * *
Um dia qualquer
_____a morte acena no horizonte,
_____e o parafuso de aço —
_____porca e contraporca,
_____se atarraxa
_____na espinha do homem todos os homens.
Pão dourado em fogo brando,
_____celebra-se
_____a beleza do contraste.
* * *
Mãos mergulhadas no futuro;
_____o branco,
_____como o silêncio,
_____se opõe ao colorido.
O poente, ouro de encantadoras rimas,
_____se entranha
_____às dobras do casaco da existência.
* * *
Um sopro de sax, amarelo limão me diz —
_____o ar raspa na garganta, pontual como a aurora.
Arde sol de primavera nos dias de outono;
_____chama-se Homem aquele que se expõe às intempéries,
_____cria anticorpos, faz a guerra e eventualmente ama.
| poemas do livro Centelha de inverno (Editora G&C, no prelo). |
Ricardo Carranza (1953) é escritor e editor. Tem textos publicados nas revistas Cult, Zunái, Germina, Mallarmargens, TriploV. É autor do romance Craquelê (no prelo), entre outros.