nine, de Divanize Carbonieri

Do outro lado da escrivaninha, ouvia a contragosto o homem falar num tom entre calmo e irritado. Poor old man. Na verdade, não. Mr. Stuart tinha apenas quarenta e seis anos. O cabelo grisalho era mais um fator genético, assim como o diabetes e a hipertensão. Pity. Ele estava tão empenhado em ajudá-la. Shame to be so ungrateful. Ela sabia e não queria ser grosseira, mas realmente não se interessava pelo que ele dizia. Já não se importava mais. Life sucks anyway. Com muito estoicismo, suportara os dias de julgamento. Todos aqueles que considerava amigos tinham lhe indicado como a principal responsável. Mentor of crime. Mentor. A new word to be learned. Bullshit! Não tinha colocado revólver na cabeça de ninguém. They did it because they wanted to. Que podia fazer se era a mais inteligente, a única que pensava nos detalhes? Se tivessem agido conforme o combinado, nunca seriam apreendidos. Idiots who messed everything up. Era isso o que eram. E agora tentavam jogar tudo nas suas costas para livrar as próprias peles. Could have done the same? Yeah. Talvez assim também pegasse uma pena mais branda. Mas não era do seu feitio. Never, never a stool pigeon. Preferia enfrentar o pior. Não temia nada. Desde de muito nova, se sentira atraída pelo perigo, pela aventura. No lugar em que nasceu, tal modo de agir era visto como loucura. Demon possession. Tantas vezes tentaram exorcizar os diabos de dentro dela. They and only they were the demons. Queriam que fosse submissa como se esperava de todas as mulheres da comunidade. Mas apanhava como homem. Got beaten all the time. Beaten with sticks, whips, punching, kicking. It never worked. Jamais baixou a crista. Só se fortaleceu. Suportou tudo sem se render até que conseguiu escapar daquele inferno. Desde então, perambulava de um canto a outro, fazendo pequenos furtos no começo. An orange or two, some bread, a drugstore candy. Depois, aprendeu a bater carteiras. Who taught it? Já nem lembrava. Tornou-se a melhor do ramo. Passou a ser respeitada pelos outros delinquentes, todos uns pivetes, como ela. No, older. Pensavam que era mais velha do que eles, e não desmentia. Depois vieram os assaltos às lojas e por fim aos bancos. Big money. A series of successes. Só andava agora com os profissionais, os experimentados na arte de subtrair. Guns and ammunition. Just to frighten folks. Não pensava realmente em matar. Achava que nunca seria necessário. Stupid cops. Não teve o que fazer. Estavam em sua rota de fuga. E daí tudo degringolou. Killing cops is bad for business, everybody knows. A polícia não deu trégua até prender a quadrilha completa. Todos os roubos a bancos da região foram imputados a eles. What a lie! Existiam muitos grupos agindo na localidade. O dela apenas era o melhor. The best. Since always. Mas o que pesou mesmo foi o assassinato dos dois policiais. Seus colegas de farda olhavam para ela com um ódio descomunal. Só não sofreu mais na prisão porque o caso ganhou muita repercussão. All those cameras. Os olhos do país inteiro voltados para o que acontecia naquela comarca. Em algum lugar, de algum modo, um jornalista tinha obtido informações que lançavam dúvidas sobre sua biografia. How he fucking found out? No tribunal, apenas sua declaração fora suficiente. Documentos não existiam, já que as crianças da comunidade nunca eram registradas em cartórios. Homeschooling just to learn to read the Bible and use the hoe. The government couldn’t care less. Quanto mais longe aqueles fanáticos estivessem do resto da sociedade, melhor. Daí não possuía certidão de nascimento nem nada parecido. One just needs to feel they are old enough. That’s what matters. Nobody has anything to do with it. Mas a lei dizia o contrário: era fundamental saber a idade de alguém para poder determinar corretamente a sua sentença. Prisão perpétua apenas para maiores de dezesseis. E punição capital só para quem atingiu pelo menos os dezoito. Se a história contada pelos jornais fosse verdadeira, aquilo seria uma falha gravíssima do judiciário. E pouco importava que ela tivesse mentido porque, nesse caso, era uma mentira que a desfavorecia enormemente. Por essa razão, o juiz e os promotores fugiam da imprensa como se foge de um incêndio, esperando que a poeira baixasse e o que ainda pensavam ser um boato caísse no esquecimento. O defensor público, por outro lado, tinha se entusiasmado com a notícia, um presente caído do céu. Mr. Stuart era um homem generoso e totalmente contrário à pena de morte. Mesmo quando ainda acreditava que o julgamento ocorria dentro da legalidade porque nem imaginava que a ré pudesse ser outra coisa que não uma moça de vinte e um anos, fez de tudo para que o resultado fosse diferente. Agora, então, moveria céus e terras para evitar essa tragédia. Se pudesse comprovar o que diziam as reportagens, ela iria para um reformatório por pouco tempo e depois estaria livre. Uma nova carreira de crimes talvez se iniciasse depois, mas Mr. Stuart pensava que era inaceitável que o Estado assassinasse pessoas. Acreditava mesmo que não podia haver palavra mais adequada: assassinato, tanto pior se autorizado por juízes, legalizado. Dava-lhe asco pensar que muitos conterrâneos achavam isso normal, até desejável. Se pudesse salvar só essa garota, já ficaria feliz. Seria uma satisfação pessoal. Assim, viajou às próprias expensas para o rancho em que ela fora criada. O mais provável é que não existissem mesmo papéis oficiais, mas se conseguisse pelo menos três testemunhas que atestassem a veracidade do fato, a justiça teria que aceitar esses depoimentos como prova. O julgamento seria anulado e ela escaparia da injeção letal. Era justamente sobre o resultado da expedição que falava agora com sua cliente. Relatou que, depois de muitas tentativas malsucedidas, foi capaz de entrevistar o seu pai. Father? Ela estranhou porque, na comunidade, a paternidade não era biológica, mas sociológica, e todos os homens adultos deviam ser respeitados como autoridades paternas, mas sem que nenhum fosse nomeado como tal. Homens e mulheres viviam separados na maior parte do tempo e só podiam manter relações sexuais uma vez por ano, apenas para gerar novos membros. A posse das mulheres alternava-se entre os homens, pois era o líder que decidia de quais deles elas teriam filhos ano a ano. No love. No special treatment. Not even from mothers. Mother was actually another meaningless word. O contato físico era reduzidíssimo, e qualquer deslize acabava punido com surras e mais surras. Mas sabia bem de quem ele estava falando. The greatest demon. The cruelest of all. O homem que tinha inoculado sua progenitora com sêmen, possibilitando que ela fosse concebida. Era também o que parecia ter mais prazer em castigar as mulheres e crianças, sobretudo uma rebelde inveterada como ela. Mr. Stuart se punha agora a descrever como tinha sido o diálogo. You have a wonderful daughter. She had problems with the law, but we can’t turn our backs on her. You shouldn’t turn your back on her. I’d be proud to have such a child. She’s very smart and tenacious. I’m convinced she can be easily reintegrated into society after some years in reformatory. That’s why I came to ask you to testify on her behalf and declare she’s still a minor. We need witnesses to prove it. If you can persuade a few more members of your community, I’m sure your daughter will be saved. Otherwise, she’ll be executed. A resposta não demorou muito. When she left, she ceased to be our daughter. She’s now the daughter of the world. If she can’t be welcomed by the world, she won’t be by us. That bridge was forever burned. Ela riu por dentro da situação. Quase chegava a ouvir aquela voz repulsiva pronunciando tais palavras. So typical of him. Mas ficou aliviada com a recusa porque a última coisa que queria era ver a cara do cão novamente. Se tudo estava, então, resolvido, não entendia por que o advogado continuava insistindo. O esclarecimento veio em seguida. Ele lhe implorou que escrevesse uma carta para sensibilizar o “pai”, lançando mão de argumentos sentimentais para que mudasse de ideia. Que pedisse perdão, que suplicasse por sua ajuda, que se humilhasse. Qualquer esforço valeria a pena. Dessa vez, ela não pôde conter a gargalhada. Mr. Stuart, I thank you very much for all your trouble to help me, but it’s out of question. I’d rather die. If you’ll excuse me, I’m going back to my cell. Levantou-se e seguiu acompanhada pelo guarda corredor a dentro. Duas semanas depois foi levada para uma audiência, algo totalmente inesperado, uma vez que não cabia mais apelação em seu caso. Ao entrar na sala em que estava o juiz, viu seu defensor a postos e, sentadas ao lado dele, três mulheres que conhecia bem, que tinham participado de sua criação. Devia a elas a mesma obediência do que àquela que lhe deu à luz, morta quatro anos depois do seu nascimento. Escrutinou a sala para ver se encontrava algum dos homens também. Era terminantemente proibido que as mulheres da comunidade saíssem da propriedade sem alguma companhia masculina. Permanecer sozinhas numa sala cheia de estranhos era, então, algo inédito. Unthinkable. Certamente receberiam uma sanção bem severa. Talvez até fossem mortas por isso. Never thought they were so brave. Elas vieram para confirmar a sua real idade. Para mostrar que diziam a verdade, tinham reunido uma série de evidências, muitas até desconhecidas dela mesma. A principal era um prontuário hospitalar de cinco anos atrás, quando precisou de atendimento médico depois de ser brutalmente espancada. The straw that broke the camel’s back. Just two months before leaving the ranch. A razão dos ferimentos tinha sido registrada como queda de um cavalo, mas logo acima vinha o seu nome e quantos anos contava na ocasião. Nine.

Divanize Carbonieri é doutora em letras pela USP e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poesia Entraves (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, e Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, além da coletânea de contos Passagem estreita (no prelo), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto na edição de 2019 e finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019. É uma das editoras da revista literária digital Ruído Manifesto e integra o coletivo Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras/MT.