a revolta de Amanda, de Antônio LaCarne

Tia Emanuela foi enterrada com um opulento colar de pérolas no pescoço. Era manca e nunca se casara. Tinha uma filha, Amanda, mas não a considerava ser de suas entranhas. A menina era tratada como uma empregada da casa. Fora rejeitada quando descobriram que era anã.

Crescera calada, com o olhar perdido, nem sequer chorava durante o velório — já acostumada a sentir-se culpada por ocupar espaços indesejados na casa e na família. Qualquer pergunta sobre o paradeiro ou a origem do pai de Amanda era assunto proibido. Diziam que a menina só podia ser filha do Diabo, afinal tia Emanuela expressava repulsa não disfarçada quando se deparava com alguma imagem de santo ou crucifixo. Dava risadas escandalosas que chocavam as pessoas. Diziam também que era uma mulher satânica, que mexia com feitiçaria, e que no inferno estaria finalmente em casa – longe do mundo e da filha que lhe causavam tanto desgosto.

Quando cheguei ao velório — após anos de recusa em visitar a cidade —, minhas tias ficaram tão contentes, que não disfarçaram os sorrisos, os abraços, as gargalhadas inapropriadas em plena sala onde o caixão era rodeado por quatro castiçais posicionados sobre quatro gigantescas colunas de mármore. Quem me abraçou por último foi Amanda. Antes que eu me ajoelhasse para dar-lhe um beijo, ela já estava grudada nas minhas pernas.

As mulheres vestidas de preto me cumprimentaram com um leve aceno de cabeça. Não havia nenhum homem na sala, além de mim. Tia Lourdes e tia Gorete me arrastaram até a cozinha, ansiosas para que eu lhes contasse as novidades sobre a minha vida. Diziam que um mês não seria suficiente para matar a saudade dos dez anos que eu me ausentara.

Amanda nos acompanhava, carregando minha enorme mala, que era maior do que ela.

— Sentimos tanto a sua falta, meu querido!

— Sim, sentimos a sua falta — concordava tia Gorete.

— Você nem imagina a alegria que você traz para essa casa, depois da tragédia que foi descobrir Emanuela caída no banheiro, estirada, com a cara grudada no ralo.

— A cara grudada no ralo — repetia tia Gorete.

— Sente aqui com a gente, Amanda — pedi, apontando uma cadeira vazia para que se aproximasse.

— Essa menina está cada dia mais estranha, mas não é por menos, foi ela quem encontrou Emanuela morta. Deve estar muito abalada, coitadinha. Está traumatizada, desde ontem que não diz uma palavra – sussurrou tia Lourdes, como se Amanda não estivesse diante de nós.

— Trouxe um presente para você — disse eu.

— Um presente para você, Amanda — repetia tia Gorete, sem olhar para ela.

— Trouxe uma boneca linda de porcelana.

— Meu filho, ela não brinca de boneca, ela já vai fazer trinta e cinco anos! — respondeu tia Lourdes, controlando a vontade de rir.

— Mas é uma boneca para enfeitar o quarto dela — respondi, tentando disfarçar a grosseria do inconveniente.

Antes de entregar-lhe o presente, ouvimos um alvoroço na sala. Quem havia acabado de chegar era o prefeito. Tia Lourdes e tia Gorete levantaram-se apressadas da mesa e correram em direção ao homem. Fingiam enxugar as falsas lágrimas que não escorriam de seus rostos. Amanda e eu observávamos a cena da cozinha.

— Vamos lá no quintal fumar um cigarro? — perguntou ela.

— E você fuma?

— Fumo escondida.

Quando já estávamos no quintal prestes a acender o cigarro, tia Gorete apareceu e me puxou pelo braço. O prefeito iria fazer um discurso em homenagem à tia Emanuela.

Após o discurso, que durou quase meia hora, as mulheres terminaram de rezar o terço. Em seguida, despediram-se. Tia Gorete fechou as portas e me levou ao meu quarto. Eram os mesmos móveis de dez anos atrás, porém as paredes estavam pintadas de amarelo, tornando o ambiente mais claro e menos obscuro. O quarto onde chorei sozinho por diversas noites.

O enterro seria pela manhã e me causava desconforto dormir naquela casa, a poucos cômodos do corpo de tia Emanuela no caixão, no escuro. Estranhei o fato das mulheres rezarem o terço. Tia Emanuela era ateia e o mínimo que deveriam fazer seria respeitar sua vontade de uma cerimônia não religiosa. Comentei com tia Lourdes e ela foi enfática:

— Ah, meu filho, morto não tem querer. O que as pessoas vão pensar?

Tia Emanuela era uma mulher de bom coração, generosa, mas que exibia certas inconstâncias emocionais, nunca fora acompanhada por um médico ou coisa do tipo.

Quando eu tinha dez anos, lembro que cheguei da escola com o nariz sangrando. Um menino que mexia comigo diariamente havia me agredido. Quem ajudou a estancar o sangramento foi ela. Ordenou que eu não contasse nada às minhas tias, pois elas fariam um escândalo na escola, exigiriam satisfações, transformando a situação num estardalhaço desnecessário. Quando pus os pés dentro de casa, ao perceber que eu estava machucado, ela me puxou para dentro do quarto, trancou a porta e cuidou do meu nariz ferido.

Sentado na cama, vi que ela destrancava o cadeado do guarda-roupa, tirando de lá uma caixinha de primeiros socorros com algodão, que ela embebeu num líquido que quase me fez sufocar.

— Um menino bateu em mim, tia. Ele me empurrou e eu caí de nariz no chão.

— Fique calado, não chore, não diga nada. O sangue de ninguém é derramado em vão.

Em poucos minutos, o sangramento e o inchaço cessaram e eu estava novo em folha. No dia seguinte fui à escola, ainda temeroso que o menino batesse em mim outra vez. No mesmo dia, surgiu a notícia de que Arthur fora encontrado afogado no açude. Uma verdadeira comoção tomou conta da cidade. Telefonaram para os pais pedindo que fossem buscar os filhos mais cedo. Quem apareceu para me buscar foi tia Emanuela.

— Não falei que o sangue de ninguém é derramado em vão? E eu é que sou chamada de louca! — disse ela, entrelaçando os dedos nos meus.

Acompanhamos a pé o carro da funerária, com cada tia enrolando os braços na minha cintura. As mesmas mulheres de preto compareceram ao enterro, além do padre, do coveiro. O padre disse poucas palavras sobre a boa conduta de tia Emanuela em vida, mulher respeitosa, íntegra: uma alma prestes a descansar eternamente.

— Amanda, estamos esperando por você, venha com a gente — perguntei, encarando a porta trancada de seu quarto.

Ela não respondeu.

— Ela disse que não vai — gritou tia Gorete, surgindo na sala e a única a vestir branco.

Ao retornarmos, poucas horas antes do almoço, fui ao meu quarto desfazer a mala. Estava exausto, triste, incomodado em revisitar a cidade, a casa, em recordar certos acontecimentos do passado, como se cada lembrança estivesse estampada nos corredores.

Ao abrir a mala, dei de cara com o embrulho do presente de Amanda. A caixa e o papel florido estavam rasgados. Dentro da caixa estava a boneca com a cabeça arrancada.

Amanda havia mexido nas minhas coisas.

Assim como ela, eu também teria me revoltado.

Antônio LaCarne é cearense, autor de Salão Chinês (Editora Patuá, 2014), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017) e Exercícios de fixação (AR Publisher, 2018). Tem poemas publicados na Colômbia, Alemanha e Grécia.