Ó, de Hugo Almeida

Freguesia. Quem não lembra ou já ouviu falar? No final do século passado, nos tais anos 80, a guarda particular de incerto governante aplicou bela surra, show de covardia, em populares que o vaiavam. Os jornais registraram a pancadaria, houve demorado processo, espancadores fotografados e reconhecidos. Seis anos depois, na véspera de deixar o posto, o sucessor demitiu os servidores envolvidos na agressão. O novo readmitiu todos. E nada mudou. Era assim naqueles anos.

Nossa Senhora do Ó, origem do nome do bairro, é também uma diminuta igreja barroca do século 18 em Sabará, Minas, Estado de ferro, nascimento e fé de meu bisavô, escritor de algum mérito. Metido a artista, na juventude chegou a desenhar, a lápis, aquele pequenino templo, magrinho, uma porta só, duas folhas. Guardo o papel, cópia fiel da igrejinha do Ó.

Guardo ainda vários outros papéis de meu bisavô, como as provas de seu primeiro livro, Ó, impresso numa gráfica da Freguesia. Um ó de gráfica, escreveu na agenda. Trabalho rápido, 45 dias. Tecnologia da ponta do século.

O curioso são as provas do volume. Numa delas não aparece a letra o. (Por isso o título?) “Pane no computador”, escreveu o velho. Engraçad ler aquelas linhas sem a letra o. “A gente mlhada, debaix dessa minha smbrinha que s tem flres. Nã, Fernand, não pss ficar lembrand iss agra.”

Ele anotou entre parênteses, na agenda que meu pai me presenteou, ao lado de pedaço (colado) das provas: “Escrever um texto sobre isso. O computador ‘come’ a letra o, mas ainda assim a leitura é possível. Depois, engole o a, em seguida as outras vogais e, por fim, as consoantes, até o texto tornar-se invisível. O papel em branco: o leitor completará como quiser. Quem consumiu com as letras, a máquina ou o leitor?”

Em nenhum dos sete livros seguintes — três de contos — aparece o texto planejado. Por que desistiu da ideia? Seria apenas uma brincadeira? Papai — leitor atento e estudioso de sua obra — tem uma explicação: “Ele não queria se parecer com Borges. Fazia questão de ser original”. Não trago na veia uma gota do sangue escritor de meu bisavô. Mas, ao descobrir o projeto dele, tive vontade de realizá-lo. Vai aqui, velho. Tudo escrito até agora vale. E o que se segue não é muito. Apenas uma descoberta: máquina nenhuma engoliu o algum. Era fme. Fme verbal ds datilgrafs, ds digitadres, de quem batia as letras, quand nenhum aparelh ainda era capaz de traduzir em palavras impressas nssa vz. ra, meu bisav, nã lhe crreu iss? Na tristez de su épc, surra n pv n ru, milhres sem cs, cmid, escl, educç, nd mis nturl d que se limentr de letrs, plvrs. Vej bm, just letra O, a mais gordinha e saborosa — de graça.

Ocorre-me outra hipótese. Apropriar-se das letras não seria lançar mão das ideias do autor na origem? Sem tijolo não se faz parede; sem parede, casa et cetera. Quem lê julga-se também autor. Ao subtrair os pequenos sinais que contam uma história, sustentam uma ideia, o datilógrafo vai-se sentindo dono de todo o texto, assim como o pedreiro acumulando pedra e massa, seguindo o risco do arquiteto. Assim como eu, bebendo na agenda de meu bisavô.

(1986/87-1994)

Para Elisa Guimarães e Nilo Scalzo

Hugo Almeida (1952), escritor e jornalista mineiro residente em São Paulo, é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Scipione, Prêmio Bienal Nestlé 1988), os contos Cinquenta metros para esquecer (Didática Paulista, 1996) e os infantojuvenis Viagem à lua de canoa (Nankin, 2009; PNBE 2011) e Meu nome é Fogo (Dimensão, 2007). Doutor em Literatura Brasileira pela USP, com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia, romance de Osman Lins, fez palestra na ABL, em agosto de 2018, sobre a vida e obra do escritor pernambucano: “Osman Lins, 40 anos depois, mais atual”, disponível no YouTube: [link]. O conto “Ó” está no livro Cinquenta metros para esquecer.