a galinha, de Carolina Quintella

Em quaisquer dos vinte cantos de baixo, um homem pega o rumo de algum Norte. Ia entrando, assim, num voo de muito acento e pouca escolha. Dirigido à classe própria, avistou, respirativo, de meia risada, onde é que era o lugar dele e de quem igual.

Ali quietou, bem onde deveria: lugar da diáspora dos de baixo, dizia sem estar escrito. Sentou certo e apercebido, guardada a alegria do pairar, primeiríssima vez, rente a alvobojudos sonhos. Cintilante, ainda anônimo de si e da alheia concepção, observava o céu e o chão, encaminhado ao destino, de encontro a uma noção, sem saber, porém, então.

Enquanto suspenso o veículo, suspensa era a mente no abstratoído; esmaecidas as ideias, sentia o momento, algo estomacal, borbulhante no feliz embrulhamento: era sonho realizando. Exceto por, ainda desconhecido o porquê, algum calvo sentimento, restado miúdo nos mindinhos dos pés, uma metade nao rida, um traço de angústia.

Mas via, com os olhos meio-vividos, que já aproximava do lugar aquele, o que sonhou, continente outro, espaço outro. E vinha o sonho; ímpeto de pertencimento e empolgação. Até no chegar na famosa rua de lá, que tanto que tanto diziam, aí é que foi se aprumando do sentir e do empolgar.

Fagocitado era o lancil pela gente na noturna avenida de cruzantes etnias insolúveis. Com-fusos sentidos, tato-fusão de esbarrão, ofato-pluri, barulhão e uma palheta de luzes em quinas: feixes amarelos, violáceo, azuis-oscilantes… verdes. “Informação”! Era muito, tudo era muito. E foi uma luzinha verde com ar importunante, que ia que ia, que resolveu seguir.

Ia à direita, à esquerda, virava outra quadra, entressaía num subway, desviava de nauseabundos buracos e… right in the bull’s eyes! A luz se deteve por segundos sobre o módico quadrado, passarinho de novas cinzentas, sem dar tempo para assimilar escritos. Ele seguiu de corpo e vista: continuava. A luzinha persistia, passava infernizante em toda parte, alto baixo, sobe e desce. E, no que seguia, a espiral da luz foi dar numa ruela deserta, daquelas que falecem às dezoito, com boutiques e seus toldos crus.

Já lá, estava só, ele e a luz, tão paciente, suavezinha, pousada em escura vitrina — ninguém diria a inquietude que tinha segundo e meio atrás. A loja esta, apagada em interior, era escuridão; só se viam vitro-reflexos do de fora para dentro, além de pouco metro em que se viu coisa mais curiosa. Ali, rente ao vidro, um serzinho engraçado: uma galinha.

Parada, ela o mirava em posição inversa. Dois lados de uma moeda? Ele analisava a galinha, a rua deserta e reparava no seu repentino isolamento. Reparava em si. Com olhar suspenso, o pensar vagante, esculpia amplo: era mesmo repentino o isolamento?

Até que a galinha rouba outra vez sua atenção ao inquietar-se, pondo-se a saçaricar de um jeito engraçado. Galinha esperta, ágil galinha! — ele reparava. Voltada a atenção para ela, ele acha graça e se ri. A galinha ri com ele. Ele a imita e ela o repete. Galinha esperta, ágil galinha! Um gingado familiar.

Pé para frente, outro pra trás, gozado o movimento. Ele acha curioso, mas gosta. Ela se mexe e ele gosta. A galinha se ri junto, ginga, sacoleja, balança, cisca, saçarica. Ele quase a entende e, rindo, para os ciscantes pés, engraçadinhos, aponta. E ela aponta de volta para os dele. Foi assim que…

Em qualquer Norte, um homem pega o rumo de algum dos vinte cantos de baixo. A metade não rida; a angústia do mindinho: vinha a realidade. Quando mirados os próprios pés, apontados pela galinha, com espanto percebeu — a si, à galinha, a tudo — tinha pés ciscantes, pés maiores do que muitos, calejados do ciscar isolado e cotidiano. Ele, galinha: uma galinha latino-americana. Saçaricante. Galinha esperta, ágil galinha! O mesmo lado da moeda e nenhum pertencimento.

Carolina Quintella (Rio de Janeiro, 1996) licenciou-se em Letras Português-Espanhol pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contista, professora e hispanista, publica em diversas revistas literárias nacionais e com frequência participa de certames internacionais. É coautora do livro sussurro:cantos de chuva (Editora Urutau, 2019) e uma das autoras do livro Filhes de Sycorax (Ganesha Cartonera e Desalinho Editorial, 2019).