Odeio o barulho dos atabaques. Produzem um som primitivo que em vez de tocarem a alma, como são capazes de fazer com maestria os violinos e os pianos, estimulam nossos instintos animalescos. Não é para menos, um tambor com nome árabe e que é usado como instrumento musical sagrado em danças religiosas africanas não pode realmente ser algo que preste.
Não reconheço o sagrado, nem tampouco presto a ele alguma deferência. Trata-se de uma bobagem oriunda da fé, palavra esta que alço ao lugar mais alto do pódio das misérias da Humanidade. A fé é tão tosca e sem sentido que o criador, se é que realmente ele ou ela existe, sequer um dia precisou tê-la. Por que alguém que tudo criou necessitaria ter fé na própria criação? A fé é o recurso das criaturas incompetentes. O Universo existe para ser constatado e não para ser alvo da crença infantil dos fracos e dos incapazes de compreendê-lo de fato. Para estes, o que resta para que o cérebro crie algum sentido sobre a própria vida é essa imaginação mitológica medíocre e que serve de alicerce para as religiões inebriantes e inúteis.
O que sinto por aquela desgraçada desencarnada não tem relação alguma com fé, muito menos com o sagrado. É apenas paixão, completamente incontrolável, doentia, e que começou para meu azar e ironia em meio ao ruído primitivo daqueles malditos atabaques. Nunca havia me apaixonado, sempre achei esse tipo de sentimento um descontrole dos mais fracos e dos emocionalmente dependentes. Nascemos e morremos sozinhos, e por que diante de tão inexorável caminho precisamos gastar energia vital para criarmos um laço de dependência tão forte em relação a outro ser qualquer que um dia desses nos deixará? Só agora, no entanto, percebi que a paixão não é uma escolha, é um distúrbio.
a vítima-algoz
Sempre achei que o momento da morte deveria ser como aquelas últimas cenas tão comuns das telenovelas que os vivos de hoje em dia tanto gostam. Todas as pessoas que passaram por sua vida: amigas, inimigas, protagonistas, coadjuvantes e figurantes, reunidas em festa, não mais vestidas do papel que tiveram com quem está prestes a partir, bebendo, se abraçando e confraternizando com sorrisos largos e sensação de dever cumprido, de trabalho concluído, de ter seguido à risca seu script na vida do outro que naquele momento se despede. O fim marcado em letras garrafais em primeiro plano na tela, com todos ao fundo, meio que já desfocados, cravaria a passagem e o encerramento de uma história sem dívidas, rancores ou amores, pois nenhum papel deve extrapolar sua trama, transgredir as fronteiras de seu universo narrativo. Sair da vida seria, então, como deixar um papel e uma história sem mágoas, paixões ou grandes saudades, pois estas seriam do campo das personagens e não dos atores e das atrizes que as interpretam.
Tive pena de mim por não ter morrido assim. De não ter sido apenas uma personagem de mim mesma durante a vida, e de não ter feito a viagem sem malas, somente com a roupa do corpo, sem o peso quase insuportável de tudo o que não é esquecido.
o último encontro
Voltei, meu amor (de “Poesias Baratas e rimas pobres”)
Voltei, meu amor
Quem diria, eu voltei
Você jamais contaria
Com meu cheiro novo de naftalina
Voltei para azedar a sua sopa
Para manchar a sua roupa e estragar a sua festa
Nem todo mundo que some, presta
Nem todo mundo que fica, resta
Sou prova viva de seu passado esperançoso
Verdadeiro céu perto do seu presente insosso
Não vim buscar o que não é mais meu
Nada que tenha hoje me interessa
Apareci apenas como um encosto matreiro
Para te mostrar que quando se esquece o passado, ele volta ainda mais safado
Pronto para te pegar e te sangrar na alma de repente
E te mostrar que você ainda não é gente
Voltei, meu amor
Leonardo Valente é escritor, jornalista, professor de Relações Internacionais e diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Em ficção, publicou o romance Charlotte Tábua Rasa, em 2016, e a antologia Apoteose, finalista do Prêmio Sesc de Literatura, em 2018. Um de seus originais ainda não publicados, o romance A procissão, foi vencedor do Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores (UBE), em 2017. Foi um dos escritores convidados da Primavera Literária Brasileira 2019, na França e na Bélgica, um dos mais importantes eventos de literatura brasileira na Europa.
O beijo da Pombagira (Editora Mondrongo, 2019) será lançado na próxima quinta-feira, 5 de setembro, na Bienal do Rio, e foi finalista da Segunda Edição do Prêmio Rio de Literatura. Saiba mais no [link].